quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Cadê a maravilha da minha Alice?

Tanto se falou na obra de Lewis Carroll, Alice no País das Maravilhas. Sob o aspecto histórico, psicanalítico; cinematográfico, diante do atual empenho de Tim Burton, promete mais revelações. História riquíssima em simbolismos. Nunca tão atual se tomarmos o drama da protagonista adolescente Alice.

Entediada, ela diz:

“Se esse mundo fosse só meu, tudo nele seria diferente.
Nada era o que é, porque tudo era o que não é.
Tudo o que é, por sua vez, não seria;
E o que fosse, seria.”

Deixemos a adolescência de lado e vejamos o mundo da mulher moderna: com um, dois ou três filhos, um trabalho exaustivo, um marido que requer seus cuidados, as tantas cobranças e necessidades domésticas, estéticas, familiares, organizacionais, sociais, ufa! A fala de Alice é o desejo inibido.

Alice segue, então, o coelho branco com um relógio de bolso. Agitado, ele clama:

“É tarde! É tarde! É tarde até que arde!
Ai, ai, meu Deus! Alô, adeus! É tarde, é tarde, é tarde!”


Na fábula moderna, dessa mulher que acompanhamos diariamente, o coelho apressado é recorrente. Significa a crua hora, minuto após minuto, exígua para a solução das demandas do seu mundo. Ao entrar no buraco atrás do coelho ela não põe em prática o sonho do desejo inicial, mas entra numa roda viva de afazeres e de perspectivas irrealizáveis. É sempre tarde no buraco imaginário da mulher moderna.

Nesse espaço virtual de hoje, a Alice está seduzida por um mundo paralelo, o qual jamais alcança. Deseja que tudo fosse ao contrário. Deseja paz. Deseja que o tempo não lhe escape. Ela segura um espelho, mas não reflete a própria imagem interna, pois não há tempo para vê-la. Não há maneira de romper com o contemporâneo pré-estabelecido. A Alice moderna tem que ter tudo sob controle. Ela precisa de tudo planejado. É uma busca “ardida” pelo equilíbrio imposto. Nada gera questionamentos: apenas resolvem-se os Alôs, Adeus, porque é tarde até que arde!

Então você pergunta para a Alice dos dias modernos: “você é feliz?” E ela dirá que, claro, é muito feliz, realizada em tudo, porque tem seu dinheiro (trabalha por prazer), tem seus filhos (todos educados), tem seu corpo (gordurinhas possíveis), tem um marido (aquele fiel). “A Alice tem um espelho?” − perguntamos, enfim. Ela hesita na resposta. Citaremos então Hampty Dumpty quando ensinou a Alice o que realmente é importante:

“Quando eu uso uma palavra − disse Humpty Dumpty num tom escarninho − ela significa exatamente aquilo que eu quero que signifique ... nem mais nem menos.
A questão, − ponderou Alice – é saber se o senhor pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes.
A questão, − replicou Humpty Dumpty – é saber quem é que manda. É só isso.”


O espelho ficou pra trás. A Alice contemporânea não pode fazer as palavras dizerem coisas diferentes. O desejo inicial, se o mundo fosse meu tudo seria diferente, se esvaiu perante o relógio louco, frente à dureza de ser igual e caber num poder necessário.

Lá pelas tantas, a essência fala. A mulher moderna perde o controle. A Alice grita e se descontrola diante do mundo frígido e gelado. Quando vê, inevitável, seu reflexo no espelho ela quer visitar uma Lebre de março ou um Chapeleiro Louco.

“Tanto faz a direção, visite quem você quiser. − disse o Gato para Alice − São ambos loucos.
Mas eu não ando com loucos − observou Alice.
Oh, você não tem como evitar − disse o Gato − somos todos loucos por aqui.
Eu sou louco. Você é louca.
Como é que você sabe que eu sou louca? − disse Alice.
Você deve ser − disse o Gato, − senão não teria vindo para cá.”


A mulher moderna, sem espelho, sem seu reflexo, dura e ditatorial nos seus valores, habita (cedo ou tarde) um mundo de loucos. Suas palavras nunca poderão ser diferentes. Grudada apenas em mostrar quem manda.

O espelho da Alice permite e acolhe a diferença. Como diz uma amiga das mais queridas:

“Sabendo o que queremos, é mais fácil eliminarmos as coisas que estão sobrando. Eliminando as que estão sobrando, fica mais fácil, ainda, cuidarmos das que permaneceram. E então, entendemos o que é prioridade.”

Na Alice, hoje, não há o quê pôr como sobra. O coelho não quer, Humpty Dumpty não deixa e ficar louca como gatos, lebres ou chapeleiros é uma heresia. Nem se fale noutros diálogos com rainhas e lacraias do País das Maravilhas.

Não há espelhos d’alma. Tudo é prioridade, tudo é urgente.
Não há o que fosse seria hoje em dia.

Fonte:
http://mapadepalavras.blogspot.com/2010/01/cade-maravilha-da-minha-alice.html

Por Renata Quirino de Sousa

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Héstia - deusa grega dos laços familiares

É a deusa grega dos laços familiares, simbolizada pelo fogo da lareira

Filha de Cronos e Reia para os gregos, era uma das doze divindades olímpicas.
(Vesta, Filha de Saturno e Cibele - na mitologia romana)

Héstia - Cortejada por Posídon e Apolo,
jurou virgindade perante Zeus, e dele recebeu a honra de ser venerada em todos os lares, ser incluída em todos os sacrifícios e permanecer em paz, em seu palácio cercada do respeito de deuses e mortais.

Embora não apareça com frequência nas histórias mitológicas, era admirada por todos os deuses.

Era a personificação da moradia estável, onde as pessoas se reuniam para orar e oferecer sacrifícios aos deuses.

Era adorada como protetora das cidades, das famílias e das colônias.

Sua chama sagrada brilhava continuamente nos lares e templos.
Todas as cidades possuíam o fogo de Héstia, colocado no palácio onde se reuniam as tribos. Esse fogo deveria ser conseguido direto do sol.

Quando os gregos fundavam cidades fora da Grécia, levavam parte do fogo da lareira como símbolo da ligação com a terra materna e com ele, acendiam a lareira onde seria o núcleo político da nova cidade.

Sempre fixa e imutável, Héstia simbolizava a perenidade da civilização.

Em Delfos, era conservada a chama perpétua com a qual se acendia a héstia de outros altares.
Cada peregrino que chegava a uma cidade, primeiro fazia um sacrifício à Héstia.

Seu culto era muito simples: na família, era presidido pelo pai ou pela mãe; nas cidades, pelas maiores autoridades políticas.

Em Roma era cultuada como Vesta e o fogo sagrado era o símbolo da perenidade do Império.

Suas sacerdotisas eram chamadas Vestais, faziam voto de castidade e deveriam servir à deusa durante trinta anos. Lá a deusa era cultuada por um sacerdote principal, além das vestais.

Era representada como uma mulher jovem, com uma larga túnica e um véu sobre a cabeça e sobre os ombros. Havia imagens nas suas principais cidades, mas sua figura severa e simples não ofereceu muito material para os artistas.

quinta-feira, 23 de dezembro de 2010

Feliz Natal e Próspero 2011!

No início dos anos 60, o pintor espanhol Pablo Picasso eternizou a pomba como símbolo da paz, em uma série de gravuras que se tornaram famosas mundialmente.


Que neste tempo de Festas Natalinas, o símbolo bíblico da pomba possa nos anunciar a aliança com Deus, que traz paz e esperança após a tormenta, como no relato de Noé após o Diluvio!

Que neste tempo de Festas Natalinas, o símbolo bíblico da pomba possa nos anunciar a presença de Deus em nossas vidas, como em Sua aparição no batismo de Jesus Cristo!

Que neste tempo de Festas Natalinas, o símbolo bíblico da pomba possa nos anunciar a vinda do Espírito Santo, do “Espírito de Amor e de Luz” que traz conhecimento, compreensão, fortaleza e fé, como em Pentecostes.


Que neste Natal, você possa renovar e fortalecer sua fé no Novo Tempo,
para um Novo Ano coberto de bençãos e realizações!

Esses são Nossos Votos para Você e sua Família!

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Borboletas - Mário Quintana

Com o tempo você vai percebendo que para ser feliz com outra pessoa, você precisa em primeiro lugar, não precisar dela.

Percebe também que aquela pessoa que você ama ou acha que ama, e que não quer nada com você, definitivamente, não é a pessoa da sua vida.

Você aprende a gostar de você, a cuidar de você e, principalmente, a gostar de quem também gosta de você.

O segredo é não correr atrás das borboletas… é cuidar do jardim para que elas venham até você.

No final das contas, você vai achar, não quem você estava procurando, mas quem estava procurando por você..!
(Mário Quintana)




Por Suely Laitano Nassif

quarta-feira, 15 de dezembro de 2010

Toque-se...

CÂNCER DE MAMA

Mais ou menos uma entre oito mulheres desenvolvem câncer de mama. É a terceira maior causa de morte para mulheres nos E.U.A.

A descoberta precoce é a chave para sobreviver ao câncer de mama. O câncer normalmente começa com um pequeno nódulo que pode se espalhar para órgãos vitais como fígado, cérebro, pulmão e espinha.

Causa: não é conhecida. Qualquer mulher pode desenvolver e homens também podem.
- Ter mãe ou irmã com câncer de mama
- Nunca ter tido filhos
- Ter tido o primeiro filho após os 30 anos
- Histórico de exposição a radiação
- Fumar
- Terapia hormonal (estrogênio)
- Uso excessivo de álcool
- Ferimento no seio
- Obesidade

Sintomas: Na maior parte das vezes o primeiro sinal do câncer de mama é um pequeno nódulo no seio. O nódulo é geralmente indolor que pode crescer lenta ou rapidamente.

Outros sintomas:
- Mudança de cor, reentrâncias, enrugamentos, ou elevação da pele em uma área do seio
- Uma mudança do tamanho ou formato do seio
- Secreção no bico do seio
- Um ou mais nódulos nas axilas

Diagnóstico:
- Fazer um auto exame mensal
- Fazer exame médico pelo menos uma vez ao ano
- Fazer uma mamografia entre 35 a 39 anos de idade. A partir daí, após os 40 a cada 1 ou 2 anos, de acordo com o programa recomendado pelo seu médico. A partir dos 50 anos, você deve fazer uma mamografia a cada ano. Se você apresentar características de alto risco de câncer de mama, você deve começar a fazer mamografias regulares aos 35 anos ou menos.

A maior parte dos nódulos não são câncer. Na maioria das vezes eles são cistos com fluidos no tecido do seio que aumentam e diminuem com o ciclo menstrual. Mas todo nódulo deve ser avaliado.

Fonte:
http://boasaude.uol.com.br/











Suely Laitano Nassif

quarta-feira, 1 de dezembro de 2010

A sensibilidade tangível do feminino


"Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.
Elas não levam "não" como resposta
quando acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para suas crianças poderem tê-los.
Elas vão ao médico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre um aniversário,
um baile ou um novo casamento.

Seus corações quebram quando seus amigos morrem.
Elas lamentam-se com a perda de um membro da família,
contudo são fortes quando elas pensam que não há mais força.
Elas sabem que um abraço e um beijo podem curar um coração quebrado.
O coração de uma mulher é o que faz o mundo girar!

Mulheres fazem mais do que dar a vida.
Elas trazem alegria e esperança.
Elas dão compaixão e ideais.
Elas dão apoio moral para sua família e amigos.
Mulheres têm muito a dizer e muito a dar."
(Pablo Neruda)


Por Suely Laitano Nassif

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Não consigo parar...


Muitas vezes ficamos tão obssecados
com tarefas e rotinas
que esquecemos de todo o resto

que está ao nosso redor...
nos esquecemos até de nós mesmos...





Suely Laitano Nassif

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A fonte da juventude chama-se Mudança - Lya Luft

Lya Luft é escritora brasileira, professora e tradutora. Após um evento sobre o dia da mulher, ela fez o comentário abaixo:"Mês passado participei de um evento sobre o Dia da Mulher. Era um bate-papo com uma platéia composta de umas 250 mulheres de todas as raças, credos e idades. E por falar em idade, lá pelas tantas, fui questionada sobre a minha e, como não me envergonho dela, respondi. Foi um momento inesquecível... A platéia inteira fez um 'oooohh' de descrédito. Aí fiquei pensando: 'pô, estou neste auditório há quase uma hora exibindo minha inteligência, e a única coisa que provocou uma reação calorosa da mulherada foi o fato de eu não aparentar a idade que tenho? Onde é que nós estamos?

Onde não sei, mas estamos correndo atrás de algo caquético chamado 'juventude eterna'. Estão todos em busca da reversão do tempo.

Acho ótimo, porque decrepitude também não é meu sonho de consumo, mas cirurgias estéticas não dão conta desse assunto sozinhas. Há um outro truque que faz com que continuemos a ser chamadas de senhoritas mesmo em idade avançada.
A fonte da juventude chama-se "mudança".

De fato, quem é escravo da repetição está condenado a virar cadáver antes da hora. A única maneira de ser idoso sem envelhecer é não se opor a novos comportamentos, é ter disposição para guinadas. Eu pretendo morrer jovem aos 120 anos. Mudança, o que vem a ser tal coisa?

Minha mãe recentemente mudou do apartamento enorme em que morou a vida toda para um bem menorzinho. Teve que vender e doar mais da metade dos móveis e tranqueiras, que havia guardado e, mesmo tendo feito isso com certa dor, ao conquistar uma vida mais compacta e simplificada, rejuvenesceu.

Uma amiga casada há 38 anos cansou das galinhagens do marido e o mandou passear, sem temer ficar sozinha aos 65 anos. Rejuvenesceu.

Uma outra cansou da pauleira Urbana e trocou um baita emprego por um não tão bom, só que em Florianópolis, onde ela vai à Praia sempre que tem Sol. Rejuvenesceu.

Toda mudança cobra um alto preço emocional. Antes de se tomar uma decisão difícil, e durante a tomada, chora-se muito, os questionamentos são inúmeros, a vida se desestabiliza. Mas então chega o depois, a coisa feita, e aí a recompensa fica escancarada na face.
Mudanças fazem milagres por nossos olhos, e é no olhar que se percebe a tal juventude eterna. Um olhar opaco pode ser puxado e repuxado por um cirurgião a ponto de as rugas sumirem, só que continuará opaco porque não existe plástica que resgate seu brilho.
Quem dá brilho ao olhar é a vida que a gente optou por levar.
Olhe-se no espelho..."

(Lya Luft)

Por Suely Laitano Nassif

domingo, 14 de novembro de 2010

Temática do Feminino



O que é ser mulher?
Como ser mulher?

Mulheres que escrevem...
Mulheres que se tornam conscientes...



AS HORAS
O romance Mrs. Dalloway ficou conhecido pelo filme, baseado na obra homônima de Michael Cunningham, filme no qual Virginia foi interpretada por Nicole Kidman, premiada com um Oscar por seu retrato da escritora britânica. As Horas conta várias histórias, mescla a vida da própria autora (Virginia Wolf) numa personagem e coloca algumas particularidades de Mrs. Dalloway numa dessas histórias. Em Mrs. Dalloway, Virginia descreve um único dia da personagem, quando ela prepara uma festa.

VIRGINIA WOOLF (Londres, 25 de Janeiro de 1882 — Lewes, 28 de Março de 1941) foi uma escritora, ensaísta e editora britânica, conhecida como uma das mais proeminentes figuras do modernismo.
Woolf era membro do Grupo de Bloomsbury e desempenhava um papel de significância dentro da sociedade literária londrina durante o período entreguerras. Seus trabalhos mais famosos incluem os romances Mrs Dalloway (1925), Passeio ao Farol (1927) e Orlando (1928), bem como o livro-ensaio Um Quarto Só Para Si (1929), onde encontra-se a famosa citação "Uma mulher deve ter dinheiro e um quarto próprio se ela quiser escrever ficção".

A sua última obra foi Entre os atos, publicada em 1941, posterior à sua morte.

Suicídio
No dia 28 de Março de 1941, após ter um colapso nervoso Virginia suicidou-se. Ela vestiu um casaco, encheu seus bolsos com pedras e entrou no Rio Ouse, afogando-se. Seu corpo só foi encontrado no dia 18 de abril.
Em seu último bilhete para o marido, Leonardo Woolf, Virginia escreveu:

Querido,
Tenho certeza de estar ficando louca novamente. Sinto que não conseguiremos passar por novos tempos difíceis. E não quero revivê-los. Começo a escutar vozes e não consigo me concentrar. Portanto, estou fazendo o que me parece ser o melhor a se fazer. Você me deu muitas possibilidades de ser feliz. Você esteve presente como nenhum outro. Não creio que duas pessoas possam ser felizes convivendo com esta doença terrível. Não posso mais lutar. Sei que estarei tirando um peso de suas costas, pois, sem mim, você poderá trabalhar. E você vai, eu sei. Você vê, não consigo sequer escrever. Nem ler. Enfim, o que quero dizer é que é a você que eu devo toda minha felicidade. Você foi bom para mim, como ninguém poderia ter sido. Eu queria dizer isto - todos sabem. Se alguém pudesse me salvar, este alguém seria você. Tudo se foi para mim mas o que ficará é a certeza da sua bondade, sem igual. Não posso atrapalhar sua vida. Não mais. Não acredito que duas pessoas poderiam ter sido tão felizes quanto nós fomos.
Fonte: Wikipedia


Suely Laitano Nassif

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Rotina Matinal

Um chora, outro grita.
As mães amamentam
e banham
e ninam
e nada.
É a fome,
a dor-de-barriga,
o sapinho, a lombriga,
e os poucos meses de vida
que absorvem tempo
e tempo
e tempo
e paciência.
E quem está em volta se perde
entre tantas voltas
e mamadeiras
e fraldas
e a falta de tempo,
que não sobra pra mais ninguém,
pra nada.
Quem sabe um dia
tudo volte à normalidade
e os filhos se tornem amigos
e essas mulheres voltem a amar
tudo e todos,
não um só.

Ana Lúcia Sorrentino (Alento, 2007)

terça-feira, 2 de novembro de 2010

Comentário sobre o conto “Amor”, de Clarice Lispector

Enfocando a temática feminina e na intenção de pensarmos mais profundamente nos vários papéis que a mulher exerce, e como exerce, em sua natureza multifacetada, a Suely está postando uma trilogia de Clarice Lispector.

Nesse post, temos o conto Amor.
E eu... eu me descabelo! rsrsrs... Por quê? Porque os textos de Clarice são tão absurdamente ricos, e já falam tanto, que me parecem prescindir de comentário. É ler, se deixar tocar, se emocionar, e pronto. Pra que mais? Por instantes me deixo dominar por uma sensação de inutilidade total...

Mas aí há o paradoxo: não é preciso escrever mais nada, mas se quiser fazê-lo, cada conto poderia render um livro. Ainda mais que cada situação que ela coloca, cada sentimento que descreve, me reportam aos estudos de Clarissa, de Mulheres que Correm com os Lobos. As ligações são diretas, é inevitável.
Me ocorre que se as personagens de Clarice tivessem a oportunidade de ler os estudos de Clarissa, suas angústias seriam tão menores...

Opto por não escrever o livro, que, afinal, não caberia no blog, rsrsrs... e por comentar aquilo que, de pronto, mais me toca. Mas, faço isso na esperança de que nossos leitores se envolvam e aceitem nosso post e meu comentário como provocação para que se manifestem. Como aconteceu no post anterior, A Fuga, em que recebemos comentários riquíssimos, que agregaram imenso valor ao trabalho. Queremos agradecer demais pela participação dos que se envolveram.

Antes de partir para o comentário em si, quero dizer que estamos falando sobre situações femininas, mas não estamos falando só para mulheres, nem só de mulheres. Qualquer homem que vier a ler esse conto e este comentário poderá se enxergar em alguns momentos da vida. Todo homem também tem o feminino dentro de si. E questões da alma sempre me parecem acima das questões de gênero. Basta ler com os olhos da emoção.

Vamos lá!
Li, e reli, e reli, e o que mais grita, para mim, em Ana, a personagem do conto, é o medo da exuberância da vida.
Quando jovens, e nos descobrindo, muitas vezes nos assustamos ao perceber essa exuberância. Há tanto para ser vivido, tanto para se aprender, tanto a se fazer, tanta gente pra se conhecer, tanto prazer pra se sentir, que não raro nos percebemos nessa exaltação perturbada, nessa felicidade insuportável... O que fazer de nós mesmos?

Não sei exatamente que mecanismos externos ou internos nos fazem temer uma vida vivida em sua plenitude. Pais rígidos ou castradores, o envolvimento em alguma religião limitadora, escolas que funcionam mais como quartéis do que como estímulos para nosso crescimento, amigos preconceituosos, experiências que nos traumatizam por um ou outro motivo... regras que não nos servem, mas que somos treinados a obedecer desde o berço...
Não sei. Sei que nascemos livres e há um enorme empenho do meio para que acreditemos que, se vivermos nossa liberdade, nos perderemos em algum ponto do caminho.

Assim, Ana se refugia numa vida regrada. Que lhe parece configurar uma vida de adulto.
Um lar e a responsabilidade real de cuidar do marido e dos filhos parece dar sentido à vida. Disciplina, rotina, dedicação constantes a colocam no prumo.
Amar, casar, ter filhos e dedicar-se profundamente a eles faz parte da natureza feminina. Seguir algumas regras que nos servem, ter rotina e disciplina podem ser atitudes extremamente saudáveis. Viver isso tudo nos faz crescer, florescer, amadurecer.

Mas fazer do casamento, da criação de filhos, e da obediência a regras e disciplinas rígidas um escudo para se proteger da riqueza do mundo e da vida acaba, inevitavelmente, em crise.
Cria-se um mundo ideal, redondinho como uma linda gema de um ovo saudável. Bonita, brilhante, encapsulada numa película protetora que, às vezes, nos ilude simulando enorme resistência.

Enquanto todos precisam dela e aquela hora perigosa não chega, Ana se sente segura. Mas quando as árvores que plantou começam a rir dela, há inquietação no ar.
Embora queira adiar a crise, insistindo em cuidar da família à sua revelia, algo inusitado abre um portal que leva à sua alma, e a gema se quebra. Escorre, gosmenta, suja tudo, provoca confusão e constrangimento.

Quando vivemos em função do meio e viramos as costas para nós mesmos, um sentimento inusitado às vezes faz isso. Abre as portas para nossa alma. São as situações iluminadoras. Uma lembrança de infância, um som, um cheiro... e de repente nos deparamos com nós mesmos. Ana viu um cego mascando chicles, e o rompante de amor que sentiu a iluminou e a colocou em contato direto com sua alma. E o que viu?
Em Mulheres que Correm com os Lobos, Clarissa Pinkola Estés faz uma linda comparação entre o deserto e algumas mulheres. Ela diz que embora o deserto seja árido na superfície, sob ela há uma vida riquíssima, prestes a explodir a um menor sinal de água. Toda mulher tem, dentro de si, sua versão primeva, que se mantém íntegra independentemente do quanto tenha sido maltratada pelo meio externo.
Ana viu sua versão primeva, seu subterrâneo fértil. Que susto!
O contato com o divino nela parece ter provocado uma ruptura com as leis externas que até então pareciam norteá-la. E o que vem a seguir é semelhante a uma crise de labirintite, tal a intensidade do sentimento. Ana se assusta, fica tonta, e acaba por mergulhar no Jardim Botânico, um espaço de absurda riqueza, fertilidade, exuberância, que a faz perceber o quanto a vida asséptica pela qual optara era limitadora. E, a partir daí, um mundo de sensações a faz sentir-se invadida pela pior vontade de viver.

E, por que pior vontade de viver? A impressão que tenho é a de que Ana está tão afastada de seus anseios mais íntimos que o contato com tudo que é selvagem em si mesma a aterroriza e lhe parece negativo e sujo. Sente fascínio, nojo, medo, tudo tão intensamente que se apavora.
Volta pra casa, abraça o filho e sente medo de esquecê-lo, tão possuída está pela sede de viver.

A cena de Ana abraçando o filho e pedindo-lhe que não a deixe esquecê-lo me reportou aos meus próprios temores, quando, depois de longos períodos de amamentação e dedicação exclusiva aos meus filhos, em que me sentia a mulher mais feliz do mundo, começava a perceber a vida lá fora piscando pra mim. Creio que quase todas as mães passem por isso. Uma imensa vontade de voltar a viver algo que não só a maternidade, mas uma imensa culpa, por imaginarmos que deveríamos ser só mães, e nos sentirmos plenamente felizes com isso. De onde tiramos isso???

O contato com sua alma a rejuvenescera.

Ana, temerosa, talvez queira voltar ao conforto da segurança forjada em detrimento da felicidade: pede ao filho que não a deixe esquecê-lo, e permite que o marido a afaste novamente do perigo de viver.
Afinal, por que tememos a liberdade, e por que consideramos que viver plenamente pode ser perigoso?

Vejo como vida de adulto não aquela em que estabelecemos regras para nos obrigarmos a cumpri-las, e não sairmos da linha, mas aquela em que não tememos usar a liberdade a nosso favor, para crescermos continuamente, experimentando o novo e conscientes de que podemos sobreviver a tudo.

Uma das coisas mais bonitas que escutei nos últimos tempos veio de um amigo, que tem me ensinado muito. Dizendo-lhe da imensidão de sentimentos que me acomete às vezes, e confessando-lhe não saber o que fazer com isso, ele me respondeu que não me assustasse, que apenas precisava apertar uns parafusos na minha cabeça... rsrsrs...
Tamanha demonstração de aceitação vindo da parte dele me ajudou a aceitar meus próprios sentimentos. E é a partir da auto-aceitação que nos reorganizamos e partimos pra vida, sem medo de ser feliz. Mas, para que nos aceitemos, é preciso que estejamos em contato permanente com nossa alma, e consigamos manter com ela saudáveis diálogos esclarecedores.

Ana Lúcia Sorrentino

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Amor - Clarice Lispector

"Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha - com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto - ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.
O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.
O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.
Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar - o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir - como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada - o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão - Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava - o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.
A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão - e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução,
as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto.
Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.

Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando
um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.
Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.
A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.
De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.
Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou - voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.
Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário - era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega - era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta,
como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.
Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria - e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito - o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava - que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto.

Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado - amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal - o cego ou o belo Jardim Botânico? - agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta.

O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. O sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?
Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo - e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria

apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.
Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.
Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas.

Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.
- O que foi?! gritou vibrando toda.
Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:
- Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.
Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.
- Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela.
- Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher,

levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver.
Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia".





Por Suely Laitano Nassif

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A Fuga - Clarice Lispector

Começou a ficar escuro e ela teve medo. A chuva caía sem tréguas e as calçadas brilhavam úmidas à luz das lâmpadas. Passavam pessoas de guarda-chuva, impermeável, muito apressadas, os rostos cansados. Os automóveis deslizavam pelo asfalto molhado e uma ou outra buzina tocava maciamente.

Quis sentar-se num banco do jardim, porque na verdade não sentia a chuva e não se importava com o frio. Só mesmo um pouco de medo, porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O banco seria um ponto de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela prosseguia na marcha.

Estava cansada. Pensava sempre: “Mas que é que vai acontecer agora?” Se ficasse andando. Não era solução. Voltar para casa? Não. Receava que alguma força a empurrasse para o ponto de partida. Tonta como estava, fechou os olhos e imaginou um grande turbilhão saindo do “Lar Elvira”, aspirando-a violentamente e recolocando-a junto da janela, o livro na mão, recompondo a cena diária. Assustou-se. Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força: “Você não voltará”. Apaziguou-se.

Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas: “Bem, as coisas ainda existem”. Sim, simplesmente extraordinária a descoberta. Há doze anos era casada e três horas de liberdade restituíam-na quase inteira a si mesma: – primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam. Se representasse num palco essa mesma tragédia, se apalparia, beliscaria para saber-se desperta. O que tinha menos vontade de fazer, porém, era de representar.

Não havia, porém, somente alegria e alívio dentro dela. Também um pouco de medo e doze anos.

Atravessou o passeio e encostou-se à murada, para olhar o mar. A chuva continuava. Ela tomara o ônibus na Tijuca e saltara na Glória. Já andara para além do Morro da Viúva.

O mar revolvia-se forte e, quando as ondas quebravam junto às pedras, a espuma salgada salpicava-a toda. Ficou um momento pensando se aquele trecho seria fundo, porque tornava-se impossível adivinhar: as águas escuras, sombrias, tanto poderiam estar a centímetros da areia quanto esconder o infinito. Resolveu tentar de novo aquela brincadeira, agora que estava livre. Bastava olhar demoradamente para dentro d’água e pensar que aquele mundo não tinha fim. Era como se estivesse se afogando e nunca encontrasse o fundo do mar com os pés. Uma angústia pesada. Mas por que a procurava então?

A história de não encontrar o fundo do mar era antiga, vinha desde pequena. No capítulo da força da gravidade, na escola primária, inventara um homem com uma doença engraçada. Com ele a força da gravidade não pegava... Então ele caía para fora da terra, e ficava caindo sempre, porque ela não sabia lhe dar um destino. Caía onde? Depois resolvia: continuava caindo, caindo e se acostumava, chegava a comer caindo, dormir caindo, viver caindo, até morrer. E continuaria caindo? Mas nesse momento a recordação do homem não a angustiava e, pelo contrário, trazia-lhe um sabor de liberdade há doze anos não sentido. Porque seu marido tinha uma propriedade singular: bastava sua presença para que os menores movimentos de seu pensamento ficassem tolhidos. A princípio, isso lhe trouxera certa tranquilidade, pois costumava cansar-se pensando em coisas inúteis, apesar de divertidas.

Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. Não voltarei para casa. Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa venha transformá-la. Vive atrás de uma janela, olhando pelos vidros a estação das chuvas cobrir a do sol, depois tornar o verão e ainda as chuvas de novo. Os desejos são fantasmas que se diluem mal se acende a lâmpada do bom senso. Por que é que os maridos são o bom senso? O seu é particularmente sólido, bom e nunca erra. Das pessoas que só usam uma marca de lápis e dizem de cor o que está escrito na sola dos sapatos. Você pode perguntar-lhe sem receio qual o horário dos trens, o jornal de maior circulação e mesmo em que região do globo os macacos se reproduzem com maior rapidez.

Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou procurar um lugar onde pôr os pés...

Achou tão engraçado esse pensamento que se inclinou sobre o muro e pôs-se a rir. Um homem gordo parou a certa distância, olhando-a. Que é que eu faço? Talvez chegar perto e dizer: “Meu filho, está chovendo.” Não. “Meu filho, eu era uma mulher casada e sou agora uma mulher”. Pôs-se a caminhar e esqueceu o homem gordo.

Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto tempo por essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. Saíra do chuveiro frio, vestira uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era diferente de todas as tardes dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava. Abriu todas as janelas e as portas. Mas não: o ar ali estava, imóvel, sério, pesado. Nenhuma viração e o céu baixo, as nuvens escuras, densas.

Como foi que aquilo aconteceu? A princípio apenas o mal-estar e o calor. Depois qualquer coisa dentro dela começou a crescer. De repente, em movimentos pesados, minuciosos, puxou a roupa do corpo, estraçalhou-a, rasgou-a em longas tiras. O ar fechava-se em torno dela, apertava-a. Então um forte estrondo abalou a casa. Quase ao mesmo tempo, caíam grossos pingos d’água, mornos e espaçados.

Ficou imóvel no meio do quarto, ofegante. A chuva aumentava. Ouvia seu tamborilar no zinco do quintal e o grito da criada recolhendo a roupa. Agora era como um dilúvio. Um vento fresco circulava pela casa, alisava seu rosto quente. Ficou mais calma, então. Vestiu-se, juntou todo o dinheiro que havia em casa e foi embora.

Agora está com fome. Há doze anos não sente fome. Entrará num restaurante. O pão é fresco, a sopa é quente. Pedirá café, um café cheiroso e forte. Ah, como tudo é lindo e tem encanto. O quarto do hotel tem um ar estrangeiro, o travesseiro é macio, perfumado, a roupa limpa. E quando o escuro dominar o aposento, uma lua enorme surgirá, depois dessa chuva, uma lua fresca e serena. E ela dormirá coberta de luar...

Amanhecerá. Terá a manhã livre para comprar o necessário para a viagem, porque o navio parte às duas horas da tarde. O mar está quieto, quase sem ondas. O céu de um azul violento, gritante. O navio se afasta rapidamente... E em breve o silêncio. As águas cantam no casco, com suavidade, cadência... Em torno, as gaivotas esvoaçam, brancas espumas fugidas do mar. Sim, tudo isso!

Mas ela não tem suficiente dinheiro para viajar. As passagens são tão caras. E toda aquela chuva que apanhou, deixou-lhe um frio agudo por dentro. Bem que pode ir a um hotel. Isso é verdade. Mas os hotéis do Rio não são próprios para uma senhora desacompanhada, salvo os de primeira classe. E nestes pode talvez encontrar algum conhecido do marido, o que certamente lhe prejudicará os negócios.

Oh, tudo isso é mentira! Qual a verdade? Doze anos pesam como quilos de chumbo e os dias se fecham em torno do corpo da gente e apertam cada vez mais. Volto para casa. Não posso ter raiva de mim, porque estou cansada. E mesmo tudo está acontecendo, eu nada estou provocando. São doze anos.

Entra em casa. É tarde e seu marido está lendo na cama. Diz-lhe que Rosinha esteve doente. Não recebeu seu recado avisando que só voltaria de noite? Não, diz ele.

Toma um copo de leite quente porque não tem fome. Veste um pijama de flanela azul, de pintinhas brancas, muito macio mesmo. Pede ao marido que apague a luz. Ele beija-a no rosto e diz que o acorde às sete horas em ponto. Ela promete e torce o comutador.

Dentre as árvores, sobe uma luz grande e pura.

Fica de olhos abertos durante algum tempo. Depois enxuga as lágrimas com o lençol, fecha os olhos e ajeita-se na cama.

Dentro do silêncio da noite, o navio se afasta cada vez mais.





Por Suely Laitano Nassif

terça-feira, 12 de outubro de 2010

Eu sei, mas não devia - MARINA COLASANTI

Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.

A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.

A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.

A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.

A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.

A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.

A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.

A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.

A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.

A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.

(1972)

O texto acima foi extraído do livro "Eu sei, mas não devia", Editora Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pág. 09.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Marina Colasanti

Marina Colasanti (Asmara (Etiópia), 1937) chegou ao Brasil em 1948, e sua família se radicou no Rio de Janeiro. Entre 1952 e 1956 estudou pintura com Catarina Baratelle; em 1958 já participava de vários salões de artes plásticas, como o III Salão de Arte Moderna. Nos anos seguintes, atuou como colaboradora de periódicos, apresentadora de televisão e roteirista.

Em 1968, foi lançado seu primeiro livro, Eu Sozinha; de lá para cá, publicaria mais de 30 obras, entre literatura infantil e adulta. Seu primeiro livro de poesia, Cada Bicho seu Capricho, saiu em 1992. Em 1994 ganhou o Prêmio Jabuti de Poesia, por Rota de Colisão (1993), e o Prêmio Jabuti Infantil ou Juvenil, por Ana Z Aonde Vai Você?.

Suas crônicas estão reunidas em vários livros, dentre os quais Eu Sei, mas não Devia (1992). Nelas, a autora reflete, a partir de fatos cotidianos, sobre a situação feminina, o amor, a arte, os problemas sociais brasileiros, sempre com aguçada sensibilidade.


Fonte

sábado, 25 de setembro de 2010

Trechos de Clarice Lispector

"O que eu sinto eu não ajo.
O que ajo não penso.
O que penso não sinto.
Do que sei sou ignorante.
Do que sinto não ignoro.
Não me entendo
e ajo como se
me entendesse."


Suely Laitano Nassif

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O Barba Azul – Trabalhando a Negação da Realidade

No post anterior sobre o Barba Azul, questionei se você se lembrava de alguma situação em sua vida que foi tão fortemente abafada, que você concluiu que o melhor a fazer seria fingir não ter visto, não ter ouvido e não falar nada. E comentei que isso me fazia lembrar da lenda dos três macacos sábios. Hoje quero refletir sobre isso. Você me acompanha?

Clarissa, em Mulheres que Correm com os Lobos, diz que recebemos, ao longo da vida, repetidamente, a seguinte mensagem: não veja, não tenha insight, não fale, não haja.
Tenho uma experiência pessoal interessante, que ilustra muito bem o quanto, por conta disso, alguns segredos perduram por toda uma vida, e na iminência de virem à tona, ainda há os que tentam perpetuá-lo.

Eu era muito criança, e minhas irmãs e primas já eram adolescentes. Um amigo da família nos convidou para o aniversário de sua filha, e embora muito pequenina, na época, tive a percepção de que a ocasião seria especial, pela excitação que pairou em minha casa durante toda a semana anterior à festa. Especulava-se que roupas as meninas usariam, quem estaria lá, que delícias haveria para comer... Mas não me lembro de ter ouvido nenhuma recomendação especial por parte de ninguém. Estaríamos entre parentes e amigos. Portanto, seguras.
A festa foi ótima, mas, repentinamente, aconteceu algo que só vim a entender mais de quarenta anos depois! Num determinado momento, uma das meninas foi ao banheiro, e todas a acompanharam. Lembro-me de uma grande algazarra. Mal a porta se fechara atrás da última a entrar, e se ouviu uma enorme gritaria. A porta se abriu, e as meninas saíram correndo, apavoradas, uma querendo passar por cima da outra, para sair dali o mais rapidamente possível!
Sem entender o que acontecera, fui atrás, mas já chamavam para cantar o parabéns, e a agitação das meninas se diluiu na bagunça generalizada. Eu sabia que havia acontecido algo, mas, como era muito pequena, e ninguém comentou nada, também não perguntei. A coisa morreu ali. Não fosse um certo clima de consternação geral na semana seguinte, poderia se dizer que realmente, nada acontecera.

Alguns anos depois, adolescente, eu ainda me lembrava do episódio, e, conversando com minha irmã, toquei no assunto. Ela desconversou. Muito à meia-boca, falou algo sobre alguém ter hábitos estranhos, e, sinceramente, continuei não entendendo nada. Muito mais tarde, já mulher feita, e inconformada, voltei a questionar e, finalmente, fiquei sabendo o que acontecera de fato.

Vou contar pra vocês, com todas as letras, como seria absolutamente normal se a nossa sociedade tivesse interesse em descortinar a verdade: quando as meninas entraram no banheiro, deram de cara com um conhecido da família com as calças abertas e o pênis ereto pra fora, exercitando um exibicionismo doentio, que lhe era característico e sobre o qual todos os nossos conhecidos adultos estavam avisados.

Pergunto, e gostaria muito que vocês me respondessem:
- Não seria o caso de terem alertado as meninas, para que elas se cuidassem?
- Não era importante que, pelo menos, conversassem com elas depois do acontecido, para saber que impacto isso lhes causara?
- O silêncio absoluto sobre o assunto significou o quê?

Pois saibam: não se falou abertamente, nem de forma alguma. O assunto foi enterrado sem maiores explicações. Quem não tivesse compreendido o porquê da atitude daquele homem, que a metabolizasse como pudesse, porque nenhum adulto se proporia a falar sobre o caso.

Quando, mais de quarenta anos depois, me dei conta do quanto essa situação havia perdurado, fiquei indignada, e escrevi sobre isso. E - pasmem! Fui repreendida por alguém, que me disse que não se fala sobre essas coisas!!! Eu escrevera justamente para defender a idéia de que essas coisas têm que vir à tona. E recebi, já adulta, a mesma mensagem que recebera quando criança e ficara sem entender nada: não veja, não tenha insight, não fale, não haja.
E, pior: pelo tom de quem nos censura, ao trazer à tona assuntos controversos, nos sentimos como criminosos. Uma espécie de inversão de valores faz com que aquele que fala sobre o crime seja o criminoso, e não aquele que o comete.
Isso me reporta a algumas cenas que já vi em nosso cenário político em que alguém que instala uma escuta para provar algum crime de corrupção acaba sendo mais tragicamente punido do que o próprio corrupto.

Não defendo aqui a idéia de que devamos sair por aí fofocando a respeito da vida alheia, julgando e condenando, ou atirando pedras em quem tenha problemas. Defendo uma maneira realista de ver o mundo e a vida, o que nos dará competência para enxergar o Barba Azul, se ele aparecer.

No caso em questão, a família poderia, sim, de forma discreta, ter alertado as meninas que iriam à festa, para que soubessem se defender do perigo latente. E, uma vez que se criou a situação desagradável, essas meninas mereciam, sim, que algum adulto conversasse com elas a respeito do problema, para que não restassem, no final, dúvidas incômodas em suas vidas. Podemos saber como cada uma metabolizou o acontecido?

Quando recebo essas mensagens que tentam me imobilizar em todos os sentidos, me lembro da lenda dos três macacos sábios. Vocês conhecem?
Aqui mesmo, na Internet, há inúmeras versões dela, mas quase todas convergem nisso:
“Os três macacos sábios enfeitam a entrada de um templo do século XVIII, localizado no Japão. Os nomes dos macaquinhos são Mizaru (aquele que tapa os olhos), Kikazaru (o que tapa os ouvidos) e Iwazaru (aquele que tapa a boca). O folclore japonês ensina que se os homens não olhassem o mal alheio, não ouvissem o mal alheio e não falassem do mal alheio, teríamos comunidades pacíficas e harmoniosas.”
Também já li que Gandhi andava com uma estatueta desses macaquinhos, para lembrar dessa lição de sabedoria.

O fato é que, uma vez passando de boca em boca, como numa brincadeira de telefone sem fio, a essência da lenda vai se contaminando e hoje, quando pensamos na imagem desses macacos, nos vem à mente a idéia de que devemos fingir não enxergar o mal, para vivermos em paz. E isso se propaga, e as pessoas aceitam o estranho conselho!!!
Rola no mundo virtual um questionamento recorrente: afinal, os três macacos são sábios ou burros?

O que você acha? É possível combater o mal fingindo não enxergá-lo? Se você nega a realidade, a realidade muda? Se você se cala ante as injustiças, a justiça é feita?
Pense sobre isso, e exponha o que você acha, comentando aqui ou participando da nossa enquete, na guia lateral do blog.