Enfocando a temática feminina e na intenção de pensarmos mais profundamente nos vários papéis que a mulher exerce, e como exerce, em sua natureza multifacetada, a Suely está postando uma trilogia de Clarice Lispector.
Nesse post, temos o conto Amor.
E eu... eu me descabelo! rsrsrs... Por quê? Porque os textos de Clarice são tão absurdamente ricos, e já falam tanto, que me parecem prescindir de comentário. É ler, se deixar tocar, se emocionar, e pronto. Pra que mais? Por instantes me deixo dominar por uma sensação de inutilidade total...
Mas aí há o paradoxo: não é preciso escrever mais nada, mas se quiser fazê-lo, cada conto poderia render um livro. Ainda mais que cada situação que ela coloca, cada sentimento que descreve, me reportam aos estudos de Clarissa, de Mulheres que Correm com os Lobos. As ligações são diretas, é inevitável.
Me ocorre que se as personagens de Clarice tivessem a oportunidade de ler os estudos de Clarissa, suas angústias seriam tão menores...
Opto por não escrever o livro, que, afinal, não caberia no blog, rsrsrs... e por comentar aquilo que, de pronto, mais me toca. Mas, faço isso na esperança de que nossos leitores se envolvam e aceitem nosso post e meu comentário como provocação para que se manifestem. Como aconteceu no post anterior, A Fuga, em que recebemos comentários riquíssimos, que agregaram imenso valor ao trabalho. Queremos agradecer demais pela participação dos que se envolveram.
Antes de partir para o comentário em si, quero dizer que estamos falando sobre situações femininas, mas não estamos falando só para mulheres, nem só de mulheres. Qualquer homem que vier a ler esse conto e este comentário poderá se enxergar em alguns momentos da vida. Todo homem também tem o feminino dentro de si. E questões da alma sempre me parecem acima das questões de gênero. Basta ler com os olhos da emoção.
Vamos lá!Li, e reli, e reli, e o que mais grita, para mim, em Ana, a personagem do conto, é o medo da exuberância da vida.
Quando jovens, e nos descobrindo, muitas vezes nos assustamos ao perceber essa exuberância. Há tanto para ser vivido, tanto para se aprender, tanto a se fazer, tanta gente pra se conhecer, tanto prazer pra se sentir, que não raro nos percebemos nessa exaltação perturbada, nessa felicidade insuportável... O que fazer de nós mesmos?
Não sei exatamente que mecanismos externos ou internos nos fazem temer uma vida vivida em sua plenitude. Pais rígidos ou castradores, o envolvimento em alguma religião limitadora, escolas que funcionam mais como quartéis do que como estímulos para nosso crescimento, amigos preconceituosos, experiências que nos traumatizam por um ou outro motivo... regras que não nos servem, mas que somos treinados a obedecer desde o berço...
Não sei. Sei que nascemos livres e há um enorme empenho do meio para que acreditemos que, se vivermos nossa liberdade, nos perderemos em algum ponto do caminho.
Assim, Ana se refugia numa vida regrada. Que lhe parece configurar uma vida de adulto.Um lar e a responsabilidade real de cuidar do marido e dos filhos parece dar sentido à vida. Disciplina, rotina, dedicação constantes a colocam no prumo.
Amar, casar, ter filhos e dedicar-se profundamente a eles faz parte da natureza feminina. Seguir algumas regras que nos servem, ter rotina e disciplina podem ser atitudes extremamente saudáveis. Viver isso tudo nos faz crescer, florescer, amadurecer.
Mas fazer do casamento, da criação de filhos, e da obediência a regras e disciplinas rígidas um escudo para se proteger da riqueza do mundo e da vida acaba, inevitavelmente, em crise.Cria-se um mundo ideal, redondinho como uma linda gema de um ovo saudável. Bonita, brilhante, encapsulada numa película protetora que, às vezes, nos ilude simulando enorme resistência.
Enquanto todos precisam dela e aquela hora perigosa não chega, Ana se sente segura. Mas quando as árvores que plantou começam a rir dela, há inquietação no ar.
Embora queira adiar a crise, insistindo em cuidar da família à sua revelia, algo inusitado abre um portal que leva à sua alma, e a gema se quebra. Escorre, gosmenta, suja tudo, provoca confusão e constrangimento.
Quando vivemos em função do meio e viramos as costas para nós mesmos, um sentimento inusitado às vezes faz isso. Abre as portas para nossa alma. São as situações iluminadoras. Uma lembrança de infância, um som, um cheiro... e de repente nos deparamos com nós mesmos. Ana viu um cego mascando chicles, e o rompante de amor que sentiu a iluminou e a colocou em contato direto com sua alma. E o que viu?
Em Mulheres que Correm com os Lobos, Clarissa Pinkola Estés faz uma linda comparação entre o deserto e algumas mulheres. Ela diz que embora o deserto seja árido na superfície, sob ela há uma vida riquíssima, prestes a explodir a um menor sinal de água. Toda mulher tem, dentro de si, sua versão primeva, que se mantém íntegra independentemente do quanto tenha sido maltratada pelo meio externo.
Ana viu sua versão primeva, seu subterrâneo fértil. Que susto!O contato com o divino nela parece ter provocado uma ruptura com as leis externas que até então pareciam norteá-la. E o que vem a seguir é semelhante a uma crise de labirintite, tal a intensidade do sentimento. Ana se assusta, fica tonta, e acaba por mergulhar no Jardim Botânico, um espaço de absurda riqueza, fertilidade, exuberância, que a faz perceber o quanto a vida asséptica pela qual optara era limitadora. E, a partir daí, um mundo de sensações a faz sentir-se invadida pela pior vontade de viver.
E, por que pior vontade de viver? A impressão que tenho é a de que Ana está tão afastada de seus anseios mais íntimos que o contato com tudo que é selvagem em si mesma a aterroriza e lhe parece negativo e sujo. Sente fascínio, nojo, medo, tudo tão intensamente que se apavora.
Volta pra casa, abraça o filho e sente medo de esquecê-lo, tão possuída está pela sede de viver.
A cena de Ana abraçando o filho e pedindo-lhe que não a deixe esquecê-lo me reportou aos meus próprios temores, quando, depois de longos períodos de amamentação e dedicação exclusiva aos meus filhos, em que me sentia a mulher mais feliz do mundo, começava a perceber a vida lá fora piscando pra mim. Creio que quase todas as mães passem por isso. Uma imensa vontade de voltar a viver algo que não só a maternidade, mas uma imensa culpa, por imaginarmos que deveríamos ser só mães, e nos sentirmos plenamente felizes com isso. De onde tiramos isso???
O contato com sua alma a rejuvenescera.
Ana, temerosa, talvez queira voltar ao conforto da segurança forjada em detrimento da felicidade: pede ao filho que não a deixe esquecê-lo, e permite que o marido a afaste novamente do perigo de viver.Afinal, por que tememos a liberdade, e por que consideramos que viver plenamente pode ser perigoso?
Vejo como vida de adulto não aquela em que estabelecemos regras para nos obrigarmos a cumpri-las, e não sairmos da linha, mas aquela em que não tememos usar a liberdade a nosso favor, para crescermos continuamente, experimentando o novo e conscientes de que podemos sobreviver a tudo.
Uma das coisas mais bonitas que escutei nos últimos tempos veio de um amigo, que tem me ensinado muito. Dizendo-lhe da imensidão de sentimentos que me acomete às vezes, e confessando-lhe não saber o que fazer com isso, ele me respondeu que não me assustasse, que apenas precisava apertar uns parafusos na minha cabeça... rsrsrs...
Tamanha demonstração de aceitação vindo da parte dele me ajudou a aceitar meus próprios sentimentos. E é a partir da auto-aceitação que nos reorganizamos e partimos pra vida, sem medo de ser feliz. Mas, para que nos aceitemos, é preciso que estejamos em contato permanente com nossa alma, e consigamos manter com ela saudáveis diálogos esclarecedores.
Ana Lúcia Sorrentino
Nesse post, temos o conto Amor.
E eu... eu me descabelo! rsrsrs... Por quê? Porque os textos de Clarice são tão absurdamente ricos, e já falam tanto, que me parecem prescindir de comentário. É ler, se deixar tocar, se emocionar, e pronto. Pra que mais? Por instantes me deixo dominar por uma sensação de inutilidade total...
Mas aí há o paradoxo: não é preciso escrever mais nada, mas se quiser fazê-lo, cada conto poderia render um livro. Ainda mais que cada situação que ela coloca, cada sentimento que descreve, me reportam aos estudos de Clarissa, de Mulheres que Correm com os Lobos. As ligações são diretas, é inevitável.
Me ocorre que se as personagens de Clarice tivessem a oportunidade de ler os estudos de Clarissa, suas angústias seriam tão menores...
Opto por não escrever o livro, que, afinal, não caberia no blog, rsrsrs... e por comentar aquilo que, de pronto, mais me toca. Mas, faço isso na esperança de que nossos leitores se envolvam e aceitem nosso post e meu comentário como provocação para que se manifestem. Como aconteceu no post anterior, A Fuga, em que recebemos comentários riquíssimos, que agregaram imenso valor ao trabalho. Queremos agradecer demais pela participação dos que se envolveram.
Antes de partir para o comentário em si, quero dizer que estamos falando sobre situações femininas, mas não estamos falando só para mulheres, nem só de mulheres. Qualquer homem que vier a ler esse conto e este comentário poderá se enxergar em alguns momentos da vida. Todo homem também tem o feminino dentro de si. E questões da alma sempre me parecem acima das questões de gênero. Basta ler com os olhos da emoção.
Vamos lá!Li, e reli, e reli, e o que mais grita, para mim, em Ana, a personagem do conto, é o medo da exuberância da vida.
Quando jovens, e nos descobrindo, muitas vezes nos assustamos ao perceber essa exuberância. Há tanto para ser vivido, tanto para se aprender, tanto a se fazer, tanta gente pra se conhecer, tanto prazer pra se sentir, que não raro nos percebemos nessa exaltação perturbada, nessa felicidade insuportável... O que fazer de nós mesmos?
Não sei exatamente que mecanismos externos ou internos nos fazem temer uma vida vivida em sua plenitude. Pais rígidos ou castradores, o envolvimento em alguma religião limitadora, escolas que funcionam mais como quartéis do que como estímulos para nosso crescimento, amigos preconceituosos, experiências que nos traumatizam por um ou outro motivo... regras que não nos servem, mas que somos treinados a obedecer desde o berço...
Não sei. Sei que nascemos livres e há um enorme empenho do meio para que acreditemos que, se vivermos nossa liberdade, nos perderemos em algum ponto do caminho.
Assim, Ana se refugia numa vida regrada. Que lhe parece configurar uma vida de adulto.Um lar e a responsabilidade real de cuidar do marido e dos filhos parece dar sentido à vida. Disciplina, rotina, dedicação constantes a colocam no prumo.
Amar, casar, ter filhos e dedicar-se profundamente a eles faz parte da natureza feminina. Seguir algumas regras que nos servem, ter rotina e disciplina podem ser atitudes extremamente saudáveis. Viver isso tudo nos faz crescer, florescer, amadurecer.
Mas fazer do casamento, da criação de filhos, e da obediência a regras e disciplinas rígidas um escudo para se proteger da riqueza do mundo e da vida acaba, inevitavelmente, em crise.Cria-se um mundo ideal, redondinho como uma linda gema de um ovo saudável. Bonita, brilhante, encapsulada numa película protetora que, às vezes, nos ilude simulando enorme resistência.
Enquanto todos precisam dela e aquela hora perigosa não chega, Ana se sente segura. Mas quando as árvores que plantou começam a rir dela, há inquietação no ar.
Embora queira adiar a crise, insistindo em cuidar da família à sua revelia, algo inusitado abre um portal que leva à sua alma, e a gema se quebra. Escorre, gosmenta, suja tudo, provoca confusão e constrangimento.
Quando vivemos em função do meio e viramos as costas para nós mesmos, um sentimento inusitado às vezes faz isso. Abre as portas para nossa alma. São as situações iluminadoras. Uma lembrança de infância, um som, um cheiro... e de repente nos deparamos com nós mesmos. Ana viu um cego mascando chicles, e o rompante de amor que sentiu a iluminou e a colocou em contato direto com sua alma. E o que viu?
Em Mulheres que Correm com os Lobos, Clarissa Pinkola Estés faz uma linda comparação entre o deserto e algumas mulheres. Ela diz que embora o deserto seja árido na superfície, sob ela há uma vida riquíssima, prestes a explodir a um menor sinal de água. Toda mulher tem, dentro de si, sua versão primeva, que se mantém íntegra independentemente do quanto tenha sido maltratada pelo meio externo.
Ana viu sua versão primeva, seu subterrâneo fértil. Que susto!O contato com o divino nela parece ter provocado uma ruptura com as leis externas que até então pareciam norteá-la. E o que vem a seguir é semelhante a uma crise de labirintite, tal a intensidade do sentimento. Ana se assusta, fica tonta, e acaba por mergulhar no Jardim Botânico, um espaço de absurda riqueza, fertilidade, exuberância, que a faz perceber o quanto a vida asséptica pela qual optara era limitadora. E, a partir daí, um mundo de sensações a faz sentir-se invadida pela pior vontade de viver.
E, por que pior vontade de viver? A impressão que tenho é a de que Ana está tão afastada de seus anseios mais íntimos que o contato com tudo que é selvagem em si mesma a aterroriza e lhe parece negativo e sujo. Sente fascínio, nojo, medo, tudo tão intensamente que se apavora.
Volta pra casa, abraça o filho e sente medo de esquecê-lo, tão possuída está pela sede de viver.
A cena de Ana abraçando o filho e pedindo-lhe que não a deixe esquecê-lo me reportou aos meus próprios temores, quando, depois de longos períodos de amamentação e dedicação exclusiva aos meus filhos, em que me sentia a mulher mais feliz do mundo, começava a perceber a vida lá fora piscando pra mim. Creio que quase todas as mães passem por isso. Uma imensa vontade de voltar a viver algo que não só a maternidade, mas uma imensa culpa, por imaginarmos que deveríamos ser só mães, e nos sentirmos plenamente felizes com isso. De onde tiramos isso???
O contato com sua alma a rejuvenescera.
Ana, temerosa, talvez queira voltar ao conforto da segurança forjada em detrimento da felicidade: pede ao filho que não a deixe esquecê-lo, e permite que o marido a afaste novamente do perigo de viver.Afinal, por que tememos a liberdade, e por que consideramos que viver plenamente pode ser perigoso?
Vejo como vida de adulto não aquela em que estabelecemos regras para nos obrigarmos a cumpri-las, e não sairmos da linha, mas aquela em que não tememos usar a liberdade a nosso favor, para crescermos continuamente, experimentando o novo e conscientes de que podemos sobreviver a tudo.
Uma das coisas mais bonitas que escutei nos últimos tempos veio de um amigo, que tem me ensinado muito. Dizendo-lhe da imensidão de sentimentos que me acomete às vezes, e confessando-lhe não saber o que fazer com isso, ele me respondeu que não me assustasse, que apenas precisava apertar uns parafusos na minha cabeça... rsrsrs...
Tamanha demonstração de aceitação vindo da parte dele me ajudou a aceitar meus próprios sentimentos. E é a partir da auto-aceitação que nos reorganizamos e partimos pra vida, sem medo de ser feliz. Mas, para que nos aceitemos, é preciso que estejamos em contato permanente com nossa alma, e consigamos manter com ela saudáveis diálogos esclarecedores.
Ana Lúcia Sorrentino
Não sei dizer ao certo como me chegou este blog, mas uma coisa é certa: As mulheres são maravilhosas e, estão à frente dos homens "mil anos Luz"; tem coragem, determinação, assumem seus papeis, tomam atitudes em busca da sua felicidade!!!!Pelo menos assim o dizem que o fazem, mas quando quer de fato, sai da frente que vai acontecer. Ela liga a tecla "F" e vai em frente.. Isto é simplesmente lindo e extremamente humano. Sou fã das Mulheres.
ResponderExcluirToninho da Galeria do Rock
Ana
ResponderExcluirVou ler o conto e, depois (só depois) reler teu comentário.
Do que já li, pressionado pelo tempo curto, ficou essa coisa que acrescento abaixo
Beijo
José Brás
Queria falar-te
amor
deste veludo interior
que me afaga
nos sentidos
destes dedos/raizes
escalavrados aéreos/elos
do corpo fugitivos
na ânsia que sentem
pelo abismo
queria falar-te eu
mas no tom
de quem espalha a confiança
como um deus antigo
ou então
com a voz rouca
de incerteza
o gesto demorado
do pudor
os olhos vadiando-te
o corpo/mar
a ti
mulher
depósito grandioso
e secreto
da ternura
queria eu falar
do meu amor
mas como
se nos separa já
a distância
à estrela da manhã ?
Ana, eu me vi nas Anas da vida.
ResponderExcluirMaravilhoso texto e diante de tanta clareza do descobrimento...de tudo, digo que esse crescimento de dentro pra fora pode ser algo muito doloroso, mas inevitável porque no final (tem final)? Sempre resta algo a descobrir depois que abre a cortina de ferro.
Todo êxito, querida. Bjs