quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A Fuga - Clarice Lispector

Começou a ficar escuro e ela teve medo. A chuva caía sem tréguas e as calçadas brilhavam úmidas à luz das lâmpadas. Passavam pessoas de guarda-chuva, impermeável, muito apressadas, os rostos cansados. Os automóveis deslizavam pelo asfalto molhado e uma ou outra buzina tocava maciamente.

Quis sentar-se num banco do jardim, porque na verdade não sentia a chuva e não se importava com o frio. Só mesmo um pouco de medo, porque ainda não resolvera o caminho a tomar. O banco seria um ponto de repouso. Mas os transeuntes olhavam-na com estranheza e ela prosseguia na marcha.

Estava cansada. Pensava sempre: “Mas que é que vai acontecer agora?” Se ficasse andando. Não era solução. Voltar para casa? Não. Receava que alguma força a empurrasse para o ponto de partida. Tonta como estava, fechou os olhos e imaginou um grande turbilhão saindo do “Lar Elvira”, aspirando-a violentamente e recolocando-a junto da janela, o livro na mão, recompondo a cena diária. Assustou-se. Esperou um momento em que ninguém passava para dizer com toda a força: “Você não voltará”. Apaziguou-se.

Agora que decidira ir embora tudo renascia. Se não estivesse tão confusa, gostaria infinitamente do que pensara ao cabo de duas horas: “Bem, as coisas ainda existem”. Sim, simplesmente extraordinária a descoberta. Há doze anos era casada e três horas de liberdade restituíam-na quase inteira a si mesma: – primeira coisa a fazer era ver se as coisas ainda existiam. Se representasse num palco essa mesma tragédia, se apalparia, beliscaria para saber-se desperta. O que tinha menos vontade de fazer, porém, era de representar.

Não havia, porém, somente alegria e alívio dentro dela. Também um pouco de medo e doze anos.

Atravessou o passeio e encostou-se à murada, para olhar o mar. A chuva continuava. Ela tomara o ônibus na Tijuca e saltara na Glória. Já andara para além do Morro da Viúva.

O mar revolvia-se forte e, quando as ondas quebravam junto às pedras, a espuma salgada salpicava-a toda. Ficou um momento pensando se aquele trecho seria fundo, porque tornava-se impossível adivinhar: as águas escuras, sombrias, tanto poderiam estar a centímetros da areia quanto esconder o infinito. Resolveu tentar de novo aquela brincadeira, agora que estava livre. Bastava olhar demoradamente para dentro d’água e pensar que aquele mundo não tinha fim. Era como se estivesse se afogando e nunca encontrasse o fundo do mar com os pés. Uma angústia pesada. Mas por que a procurava então?

A história de não encontrar o fundo do mar era antiga, vinha desde pequena. No capítulo da força da gravidade, na escola primária, inventara um homem com uma doença engraçada. Com ele a força da gravidade não pegava... Então ele caía para fora da terra, e ficava caindo sempre, porque ela não sabia lhe dar um destino. Caía onde? Depois resolvia: continuava caindo, caindo e se acostumava, chegava a comer caindo, dormir caindo, viver caindo, até morrer. E continuaria caindo? Mas nesse momento a recordação do homem não a angustiava e, pelo contrário, trazia-lhe um sabor de liberdade há doze anos não sentido. Porque seu marido tinha uma propriedade singular: bastava sua presença para que os menores movimentos de seu pensamento ficassem tolhidos. A princípio, isso lhe trouxera certa tranquilidade, pois costumava cansar-se pensando em coisas inúteis, apesar de divertidas.

Agora a chuva parou. Só está frio e muito bom. Não voltarei para casa. Ah, sim, isso é infinitamente consolador. Ele ficará surpreso? Sim, doze anos pesam como quilos de chumbo. Os dias se derretem, fundem-se e formam um só bloco, uma grande âncora. E a pessoa está perdida. Seu olhar adquire um jeito de poço fundo. Água escura e silenciosa. Seus gestos tornam-se brancos e ela só tem um medo na vida: que alguma coisa venha transformá-la. Vive atrás de uma janela, olhando pelos vidros a estação das chuvas cobrir a do sol, depois tornar o verão e ainda as chuvas de novo. Os desejos são fantasmas que se diluem mal se acende a lâmpada do bom senso. Por que é que os maridos são o bom senso? O seu é particularmente sólido, bom e nunca erra. Das pessoas que só usam uma marca de lápis e dizem de cor o que está escrito na sola dos sapatos. Você pode perguntar-lhe sem receio qual o horário dos trens, o jornal de maior circulação e mesmo em que região do globo os macacos se reproduzem com maior rapidez.

Ela ri. Agora pode rir... Eu comia caindo, dormia caindo, vivia caindo. Vou procurar um lugar onde pôr os pés...

Achou tão engraçado esse pensamento que se inclinou sobre o muro e pôs-se a rir. Um homem gordo parou a certa distância, olhando-a. Que é que eu faço? Talvez chegar perto e dizer: “Meu filho, está chovendo.” Não. “Meu filho, eu era uma mulher casada e sou agora uma mulher”. Pôs-se a caminhar e esqueceu o homem gordo.

Abre a boca e sente o ar fresco inundá-la. Por que esperou tanto tempo por essa renovação? Só hoje, depois de doze séculos. Saíra do chuveiro frio, vestira uma roupa leve, apanhara um livro. Mas hoje era diferente de todas as tardes dos dias de todos os anos. Fazia calor e ela sufocava. Abriu todas as janelas e as portas. Mas não: o ar ali estava, imóvel, sério, pesado. Nenhuma viração e o céu baixo, as nuvens escuras, densas.

Como foi que aquilo aconteceu? A princípio apenas o mal-estar e o calor. Depois qualquer coisa dentro dela começou a crescer. De repente, em movimentos pesados, minuciosos, puxou a roupa do corpo, estraçalhou-a, rasgou-a em longas tiras. O ar fechava-se em torno dela, apertava-a. Então um forte estrondo abalou a casa. Quase ao mesmo tempo, caíam grossos pingos d’água, mornos e espaçados.

Ficou imóvel no meio do quarto, ofegante. A chuva aumentava. Ouvia seu tamborilar no zinco do quintal e o grito da criada recolhendo a roupa. Agora era como um dilúvio. Um vento fresco circulava pela casa, alisava seu rosto quente. Ficou mais calma, então. Vestiu-se, juntou todo o dinheiro que havia em casa e foi embora.

Agora está com fome. Há doze anos não sente fome. Entrará num restaurante. O pão é fresco, a sopa é quente. Pedirá café, um café cheiroso e forte. Ah, como tudo é lindo e tem encanto. O quarto do hotel tem um ar estrangeiro, o travesseiro é macio, perfumado, a roupa limpa. E quando o escuro dominar o aposento, uma lua enorme surgirá, depois dessa chuva, uma lua fresca e serena. E ela dormirá coberta de luar...

Amanhecerá. Terá a manhã livre para comprar o necessário para a viagem, porque o navio parte às duas horas da tarde. O mar está quieto, quase sem ondas. O céu de um azul violento, gritante. O navio se afasta rapidamente... E em breve o silêncio. As águas cantam no casco, com suavidade, cadência... Em torno, as gaivotas esvoaçam, brancas espumas fugidas do mar. Sim, tudo isso!

Mas ela não tem suficiente dinheiro para viajar. As passagens são tão caras. E toda aquela chuva que apanhou, deixou-lhe um frio agudo por dentro. Bem que pode ir a um hotel. Isso é verdade. Mas os hotéis do Rio não são próprios para uma senhora desacompanhada, salvo os de primeira classe. E nestes pode talvez encontrar algum conhecido do marido, o que certamente lhe prejudicará os negócios.

Oh, tudo isso é mentira! Qual a verdade? Doze anos pesam como quilos de chumbo e os dias se fecham em torno do corpo da gente e apertam cada vez mais. Volto para casa. Não posso ter raiva de mim, porque estou cansada. E mesmo tudo está acontecendo, eu nada estou provocando. São doze anos.

Entra em casa. É tarde e seu marido está lendo na cama. Diz-lhe que Rosinha esteve doente. Não recebeu seu recado avisando que só voltaria de noite? Não, diz ele.

Toma um copo de leite quente porque não tem fome. Veste um pijama de flanela azul, de pintinhas brancas, muito macio mesmo. Pede ao marido que apague a luz. Ele beija-a no rosto e diz que o acorde às sete horas em ponto. Ela promete e torce o comutador.

Dentre as árvores, sobe uma luz grande e pura.

Fica de olhos abertos durante algum tempo. Depois enxuga as lágrimas com o lençol, fecha os olhos e ajeita-se na cama.

Dentro do silêncio da noite, o navio se afasta cada vez mais.





Por Suely Laitano Nassif

8 comentários:

  1. Por que será, Suely, que vi tantas mulheres que conheço nessa mulher?
    Ela tem tudo de todas nós: o sonho, o anseio pela liberdade, a imensa vontade de viver...
    Por que será que tantas vezes relacionamentos, em lugar de somar, alegrar e fazer crescer nos enjaulam e entristecem?
    E por que nos deixamos enjaular?
    Como naquela experiência científica em que o cão, traumatizado pelos constantes choques, não consegue perceber que a jaula está aberta, e fica inerte, à mercê do que lhe impõem, seres humanos trancafiados em relacionamentos doentios perdem a noção de que nossa liberdade só pode ser tolhida por nós mesmos.
    E se mantêm onde estão, cativos.
    Então, doze anos são doze séculos. Uma vida pesa como chumbo. Uma presença tem o poder de interferir até nos mais íntimos pensamentos, até no mais inocente sorriso. Uma mulher transforma-se numa mulher casada. Mais vira menos. Pujança vira escassez.
    É a protagonista de Clarice, é a linda personagem de Meryl Streep em As Pontes de Madison, é a sofrida manicure vivida por Carla Ribas em A Casa de Alice, somos eu e você e tantas de nós, em algumas fases da vida...
    E aí, em sentido contrário, é a espirituosa dona de casa de Não sou feliz, mas tenho Marido, que depois de 27 anos de casada, joga a toalha e declara solenemente: eu já cumpri com a pátria! (confesso que, nesse instante, assistindo a peça, chorei desbragadamente ao me identificar totalmente com a personagem. Nunca uma frase me caiu tão bem...)
    Nos relacionarmos aceitando as infinitas facetas do outro, encararmos de frente o que ele tem de mais belo mas também o que tem de muito feio, nos adaptarmos às constantes mudanças, aos inevitáveis ciclos, às dificuldades que se sucedem umas às outras, é algo incrivelmente rico e faz a vida valer a pena de verdade.
    O susto perante o inusitado, no outro, pode ser muito prazeroso. O ficar e entender melhor, quando a vontade é de correr, é uma experiência e tanto. A percepção de que somos imensos, infinitos, desdobráveis, portáteis, adaptáveis e sabe-se lá mais o quê é o que dá cor à vida.
    Seria bacana se percebêssemos que a jaula não é o parceiro, mas nós mesmos. Se nos aceitássemos e nos mostrássemos, sem medo de ser feliz. Se saíssemos dela e dançássemos na chuva e nosso companheiro nos olhasse com um olhar assustado, mas que aos poucos se transformasse em admiração. E nos amasse mais, por nos enxergar com esse doce olhar de aceitação.
    A liberdade nasce conosco. E pode, sim, ser compartilhada. E a vida e relacionamentos podem ser muuito prazerosos. Acreditem. :)

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  2. Eu sou Lispectoriano desde que me dei a escrever como gente. E quando minha mulher está de TPM, converso com ela de mulher para mulher
    Silas Correa Leite
    www.portas-lapsos.zip.net
    ]

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  3. Existem muitos motivos que levam os relacionamentos a se tornarem um ciclo de mútua sabotagem. O pricipal deles, sem dúvida, é a dificuldade de se relacionar com o mundo enquanto indivíduo. Muitas pessoas, ao iniciarem uma vida a dois, se esquecem da vida que mantinham, de ser um pouco egoísta, de sair um pouco mais com os velhos amigos.
    Eu costumo dizer aos meus amigos que " eu me basto". Por algum tempo, isso me causava inquietude e um certo medo de envelhecer sozinho. Hoje não mais. Por trás de qualquer casal, existem dois indivíduos, com todas as complexas excentricidades que envolvem o ser humano. Portanto, para estar bem enquanto casal, tem-se que estar ainda melhor enquanto indivíduo. Quem não entende seus medos, suas angústias e seus desejos, dificilmente conseguirá compreender os de outrem.

    Amores são possíveis. Começemos então, amando-nos.

    Beijo pra quem é de beijo.
    Abraço pra quem é de abraço!

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  4. OLÁ SUELY....O TEU INSTIGANTE TEXTO...RELEMBRA-ME O FABULOSO ESCRITOR VERGÍLIO FERREIRA___________________

    Diz NÃO à liberdade que te oferecem, se ela é só a liberdade dos que ta querem oferecer. Porque a liberdade que é tua não passa pelo decreto arbitrário dos outros.

    Diz NÃO à ordem das ruas, se ela é só a ordem do terror. Porque ela tem de nascer de ti, da paz da tua consciência, e não há ordem mais perfeita do que a ordem dos cemitérios.

    Diz NÃO à cultura com que queiram promover-te, se a cultura for apenas um prolongamento da polícia. Porque a cultura não tem que ver com a ordem policial mas com a inteira liberdade de ti, não é um modo de se descer mas de se subir, não é um luxo de «elitismo», mas um modo de seres humano em toda a tua plenitude.

    Diz NÃO até ao pão com que pretendem alimentar-te, se tiveres de pagá-lo com a renúncia de ti mesmo. Porque não há uma só forma de to negarem negando-to, mas infligindo-te como preço a tua humilhação.

    Diz NÃO à justiça com que queiram redimir-te, se ela é apenas um modo de se redimir o redentor. Porque ela não passa nunca por um código, antes de passar pela certeza do que tu sabes ser justo.

    Diz NÃO à verdade que te pregam, se ela é a mentira com que te ilude o pregador. Porque a verdade tem a face do Sol e não há noite nenhuma que prevaleça enfim contra ela.

    Diz NÃO à unidade que te impõem, se ela é apenas essa imposição. Porque a unidade é apenas a necessidade irreprimível de nos reconhecermos irmãos.

    Diz NÃO a todo o partido que te queiram pregar, se ele é apenas a promoção de uma ordem de rebanho. Porque sermos todos irmãos não é ordenanmo-nos em gado sob o comando de um pastor.

    Diz NÃO ao ódio e à violência com que te queiram legitimar uma luta fratricida. Porque a justiça há-de nascer de uma consciência iluminada para a verdade e o amor, e o que se semeia no ódio é ódio até ao fim e só dá frutos de sangue.

    Diz NÃO mesmo à igualdade, se ela é apenas um modo de te nivelarem pelo mais baixo e não pelo mais alto que existe também em ti. Porque ser igual na miséria e em toda a espécie de degradação não é ser promovido a homem mas despromovido a animal.

    E é do NÃO ao que te limita e degrada que tu hás-de construir o SIM da tua dignidade.

    GRANDE ABRAÇO DO LUIS de SERGUILHA

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  5. Lindo!!!!!!!!!!Verdadeiro!!!!!Simples assim...
    Levei com os devidos creditos...
    Sucesso... Vocês merecem belo trabalho
    http://araretamaumamulher.blogspot.com/

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  6. Mulher poderosa! Cada dia sua dinâmica esta em alta- Parabens sei que vc chegará lá com certeza.
    Adoro seus escritos. beijos e sucesso.

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  7. Se disséssemos NÃO ao externo, com a mesma facilidade com que dizemos NÃO ao si-mesmo, teríamos mais alegria e prazer em nossas vidas. Lindo conto, porque perturbador... Mexe com as nossas mazelas e nos faz pensar... Pelo menos isso! Beijos agradecidos.

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  8. “O caminho é feito de opções. Escolhas aleatórias, em um universo marcado pela imponderabilidade, onde a vida de desdobra de maneira surpreendente. Uma imagem, uma palavra, ou um simples gesto tem poder para gerar transformações extraordinárias. É esse imponderável que nos coloca diante do inusitado e nos leva a conhecer o sentido da palavra encantamento”. (Mauricio A Costa, em ‘O Mentor Virtual II’ – O Elo Invisível – Lançamento previsto para 2011).

    Com esta frase de O MENTOR VIRTUAL exprimo meu encantamento com este blog, feito por mulheres guerreiras para mulheres que a cada dia buscam se descobrirem e a se realizarem com ser humano.
    Um abraço carinhoso.
    Mauricio A Costa

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