Ontem Saudade passou por aqui. Veio sem ligar antes, me pegou desavisada e, como sempre, me irritou com sua mania de olhar pra trás.
Às vezes tenho dó de Saudade, porque nunca a recebo com muita boa vontade. Até faço sala, coo café, dou conversa, mas sei que quando se vai, Saudade vai sempre ressentida, por perceber um certo pouco caso nessa sua nem tão grande amiga. Nem sei porque volta...
Ontem, especialmente, enveredamos por conversas perigosas.
Eu queria falar dos meus planos e expectativas e Saudade desandou a falar de gente de quem eu nem lembrava mais. Tirou do fundo do baú uma amiga com quem rompi por conta de triste intriga.
Eu queria aproveitar sua presença, algum ouvido pra me escutar, e me desabafar. Dizer da imensa correria em que vivo. Da falta de espaço e tempo pra troca de carinhos com gente que amo e que se ressente com a minha ausência. Eu queria falar do meu medo a respeito dos dias que estão por vir. Do quanto me envolvo com tanta coisa e com tanta gente e do quanto já me comprometi. Do quanto fico ansiosa por nunca saber se darei conta, se farei feio, se estarei muito aquém do que eu mesma espero de mim. Do quanto estou perdida, entre fazer o que amo e ganhar a minha vida...
E Saudade não me dava bola. Num repente, tirou de uma grande sacola fotos antigas de uma infância nem tão alegre, de relacionamentos que findaram, e mais: fotos de família... E Saudade tem uma mórbida mania de sempre trazer consigo uns biscoitinhos amargos feitos de pura Culpa. Insistia em que eu os comesse, dizendo-os necessários. Deixei-os de lado, e lhe prometi, falsamente, que os comeria antes de dormir, o que a deixou visivelmente satisfeita.
Eu olhava pra Saudade e me perguntava o porquê de tão estranha visita. Não lhe dei muita atenção. Só num fugaz momento Saudade conseguiu me tocar de verdade. Foi quando apelou pras fotos dos meus meninos, em suas mais diferentes fases. Nenemzinhos, mamando no peito... engatinhando... os primeiros passos, a ida pra escola, férias na praia junto a um bando de primos e primas, todos quase na mesma idade... Naquele instante, Saudade me arrebatou.
Mas, tenho mania de Agora e me pus a lhe contar o quanto já estão homens, metidos de cara na vida. O quanto me orgulho deles.
Saudade não me deu ouvidos. Ficou me provocando, tentando me fazer lembrar daquela vez em que, me acreditando apaixonada, quase pus tudo a perder. E então disparou a falar de tantas e tantas paixões que abortei. Colocou em dúvida minha capacidade de amar.
Questionei se não estava extrapolando, pois, se viera me visitar, com certeza não fora pra me julgar.
Enfim, eu quis falar do futuro e isso não deu muito certo. Saudade não entende nada disso. E nem eu, confesso.
Criou-se um mal-estar entre nós e, então, sentindo seu desconforto, recolhi as xícaras da mesa, catei as migalhas da toalha e me desculpei por nunca lhe dar a atenção que julga merecer.
E lhe expliquei que será muito bem-vinda quando vier com novidades. Porque há, sim, sempre em mim, uma muito viva saudade de coisas que não vivi.
Pedi que se prepare melhor e na sacola me traga fotos da casa avarandada em que vou envelhecer. Que na varanda estejam filhos e netos e algo realmente de família, com tudo de bom que isso possa trazer. Num canto, talvez, um homem me olhando com olhos de quem ama de verdade e, entre nós, uma aura de pura aceitação. E sorrisos, abraços, confraternizações sinceras...
Que me traga também uma foto de um cantinho da casa onde ganharei a vida escrevendo. Talvez em frente a uma enorme janela, de onde poderei ver meus netos, felizes, correndo.
Abracei Saudade com carinho e senti sua frustração. Então a consolei, explicando-lhe o quanto sou ruim em recordar.
E pedi que em sua próxima visita convide sua colega Tranquilidade, uma amiga com quem pouco convivi, mas de quem sempre tenho muita saudade.
Ela me prometeu não me decepcionar.
Vou esperar, confiante. E a receberei com todo carinho do mundo. Acho até que vou fazer uns bolinhos de chuva...
Escrito por Ana Lúcia Sorrentino
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