sexta-feira, 19 de agosto de 2011

Mulheres em Trânsito


Trânsito.

Se há algo, hoje, de que tenho alguma certeza, é do fato de que transito em tempo integral. Buscando na memória algum período longo em que tenha estado em zona de conforto, surpreendo-me ao perceber o quanto isso é raro em nossas existências.

Estamos vivas. E se na infância, as mudanças pelas quais passamos são dramáticas, ao longo de toda a vida elas serão apenas um pouco menos visíveis a olho nú, mas se farão presentes, indubitavelmente. Difícil passar um dia sem que tenhamos visto ou sentido algo novo, sem que tenhamos aprendido, sem que tenhamos, de alguma forma, mudado. Às vezes me pego considerando a vida extremamente curta para comportar tantas mudanças.

Pulamos do colo da mãe para o faz-de-conta com bonecas e então já nos vemos menstruando e nos adaptando a absorventes, sutiãs e desejos. O corpo mal desenhado de menina ganha contornos atraentes, percebemos que há meninos interessantes, e mal nos demos conta disso já estamos experimentando. Frequentamos a escola porque todo mundo faz isso e em meio a um turbilhão de mudanças e hormônios e novidades fazemos escolhas cruciais quanto à nossa vida profissional. Ser bancadas pelos pais, de repente, passa a ser vergonhoso e antes que possamos ter as qualificações necessárias para conseguirmos autonomia financeira, já estamos nos culpando por não estarmos um estágio além. Experimentamos a paixão, espantadas com a violência com que ela nos possui, e, mal piscamos, já nos envolvemos em algum relacionamento sério. De repente, mais mudanças, tão dramáticas quanto as infantis, tomam conta de nós. Engravidamos, e em nove meses o corpo, que mal teve tempo de se acostumar consigo mesmo, sofre uma metamorfose assustadora e, antes que pisquemos, o faz-de-conta vira vida real e nos vemos acolhendo um serzinho novo em folha, cheio de possibilidades, em nosso seio. Mal damos conta de nós e, subitamente, temos que dar conta de uma nova vida. Os filhos exigem uma maturidade que não temos, porque a vida não tem ensaio, e, por mais que tenhamos brincado de bonecas quando crianças, filhos não são bonecas.

O conceito de experiência, tal como o concebemos, de já ter vivido algo e ter aprendido e por isso saber como lidar com situações parecidas, às vezes me parece extremamente frágil. Porque a experiência que adquirimos em certa fase da vida, muitas vezes já não nos serve em outra. No fundo, jamais somos maduras de verdade.

De repente, nos vem a triste constatação de que a paixão tem data de validade. Olhamos para o nosso parceiro e nos perguntamos o que é que aconteceu.

Num estalo, percebemos que não falta muito para que a tão perturbadora fertilidade se vá e comece a provocar em nós sintomas que tememos. A urgência de viver se faz presente e, num momento em que “deveríamos” sossegar, borbulhamos mais do que nunca. Ganhamos coragem, vivemos mais intensamente do que em toda a nossa vida. E a isso se seguirão mudanças às vezes mais radicais ainda, apontando a velhice lá na frente. E assim vamos, sem pausa pra sossegar.

Enfrentamos a morte de aspectos de nossa vida o tempo todo, e parimos novas formas de ver e viver as coisas, as pessoas, as situações. Morremos e nascemos com maior frequência do que imaginávamos ser possível.

E antes que nos acomodemos em qualquer situação, algo novo nos acena do outro lado da rua, e aqueles passos que teremos que dar para chegar lá, muitas vezes parecem impossíveis. A faixa de segurança que deveria nos proteger, na verdade é uma corda bamba há muitos metros de altura, e temos que respirar fundo pra enfrentá-la e vencê-la. Passamos a vida vencendo cordas-bambas.

E assim seguimos. Transitando de uma fase a outra, de um estado a outro, marcando encontros com nós mesmas ali, do outro lado da rua, onde já seremos outra.

Circulamos entre o bem e o mal, a luz e a escuridão, a generosidade e o egoísmo, a razão e o coração, a inocência e a malícia o tempo todo. Somos pudicas e putas, bondosas e megeras, sinceras e dissimuladas. Penetramos na escuridão, descemos ao inferno e voltamos à luz e nesse turismo constante levamos réstias de luz para o escuro e sombras para a luz, aprendendo e ensinando, incansavelmente.


Transitamos.

Em certo momento, nos atrevemos a desobedecer um farol vermelho numa esquina perigosa, à noite, porque já aprendemos que a vida oferece perigos e temos que agir a nosso favor, mesmo que isso desagrade as leis do trânsito. Por outro lado, percebemos que um farol verde sinalizando passagem livre não significa necessariamente que devamos avançar sem olhar, porque já adquirimos alguma prudência quebrando a cara pela vida.

Enfim, entendemos que quem deve determinar nossas rotas e o ritmo em que avançamos somos nós. E que não precisamos pedir autorização a ninguém para atravessarmos nossos precipícios, porque, afinal, somos nós que responderemos por isso, mais ninguém.

Frequentemente penso que viver não é estar de um lado ou de outro. Mas é, justamente, estar trêmula sobre a corda-bamba. Transito daqui pra lá e de lá pra cá cheia de medo e de prazer. E penso que viver, afinal, deve ser isso.


Ana Lúcia Sorrentino

6 comentários:

  1. Ana Lúcia Sorrentino ... estive por aqui ... tudo seu é muito lindo ... profundo ... mágico ... beijos ...Marcos Mattar

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  2. Ana, me identifico muito com seu jeito de ver e de refletir sobre a vida!
    É uma delícia te ler!!
    :)

    Beijo e carinho,
    Margarida

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  3. Ôi Ana!
    Um texto rico, verdadeiro, falando das curvas do trânsito da vida.
    Magnífico.
    Beijos!

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  4. Ana, adorei o texto, descreve extamente todas as mudanças que a vida nos impõe, ou mudamos ou mudamos, não temos escolha..... beijos
    Lilian T. Lima (IPL)

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  5. É isso... precisamos, simplesmente, VIVER! Nós, homens e mulheres, estamos sempre em evolução. Cabe a nós adotarmos as mudanças que nos farão bem ao longo dos anos. O homem que comenta agora não é o mesmo que leu o texto acima há cinco minutos. Assim como a VIDA, os textos de bons escritores, como você, Nalú, têm o dom de transformar os leitores. Quando isso não acontece, suas letras provocam, ao menos, a reflexão. É sempre um prazer passar aqui.

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  6. Ana Lúcia. Você é simplesmente verdadeira!!!! Viver "é, justamente, estar trêmula sobre a corda-bamba", com diz você no texto é ter muita coragem e determinação, você vive assim, pisando em ovos o tempo todo? A cada paixão, que tem "tempo de validade", como Diz? Estou sempre surpreso com seu seu rico texto, és um modelo de espécie em evolução feminina na humanidade. Grandes bjs

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