domingo, 30 de outubro de 2011

SEDNA, A Mulher-Esqueleto

Ela havia feito alguma coisa que seu pai não aprovara, embora ninguém mais se lembrasse do que havia sido. Seu pai, no entanto, a havia arrastado até os penhascos, atirando-a ao mar. Lá, os peixes devoraram sua carne e arrancaram seus olhos. Enquanto jazia no fundo do mar, seu esqueleto rolou muitas vezes com as correntes.

Um dia um pescador veio pescar. Bem, na verdade, em outros tempo muitos costumavam vir a essa baía pescar. Esse pescador, porém, estava afastado da sua colônia e não sabia que os pescadores da região não trabalhavam ali sob a alegação de que a enseada era mal-assombrada.

O anzol do pescador foi descendo pela água abaixo e se prendeu – logo em quê! – nos ossos das costelas da Mulher-Esqueleto. O pescador pensou: ‘Oba, agora peguei um grande de verdade! Agora peguei um mesmo!’ Na sua imaginação, ele já via quantas pessoas esse peixe enorme iria alimentar, quanto tempo sua carne duraria, quanto tempo ele se veria livre da obrigação de pescar. E enquanto ele lutava com esse enorme peso na ponta do anzol, o mar se encapelou com uma espuma agitada, e o caiaque empinava e sacudia porque aquela que estava lá embaixo lutava para se soltar. E quanto mais ela lutava, tanto mais ela se enredava na linha. Não importa o que fizesse, ela estava sendo inexoravelmente arrastada para a superfície, puxada pelos ossos das próprias costelas.

O pescador havia se voltado para recolher a rede e, por isso, não viu a cabeça calva surgir acima das ondas; não viu os pequenos corais que brilhavam nas órbitas do crânio; não viu os crustáceos nos velhos dentes de marfim. Quando ele se voltou com a rede nas mãos, o esqueleto inteiro, no estado em que estava, já havia chegado à superfície e caía suspenso da extremidade do caiaque pelos dentes incisivos.

– Agh! – gritou o homem, e seu coração afundou até os joelhos, seus olhos se esconderam apavorados no fundo da cabeça e suas orelhas arderam num vermelho forte. – Agh! – berrou ele, soltando-a da proa com o remo e começando a remar loucamente na direção da terra. Sem perceber que ela estava emaranhada na sua linha, ele ficou ainda mais assustado, pois ela parecia estar em pé, a persegui-lo o tempo todo até a praia. Não importava de que jeito ele desviasse o caiaque, ela continuava ali atrás. Sua respiração formava nuvens de vapor sobre a água, e seus braços se agitavam como se quisessem agarrá-lo para levá-lo para as profundezas.

– Aaagggggghhhh! – uivava ele, quando o caiaque encalhou na praia. De um salto ele estava fora da embarcação e saía correndo agarrado à vara de pescar. E o cadáver branco da Mulher-Esqueleto, ainda preso à linha de pescar, vinha aos solavancos bem atrás dele. Ele correu pelas pedras, e ela o acompanhou. Ele atravessou a tundra gelada, e ela não se distanciou. Ele passou por cima da carne que havia deixado a secar, rachando-a em pedaços com as passadas dos seus mukluks.

O tempo todo ela continuou atrás dele, na verdade até pegou um pedaço do peixe congelado enquanto era arrastada. E logo começou a comer, porque há muito, muito tempo não se saciava. Finalmente, o homem chegou ao seu iglu, enfiou-se direto no túnel e, de quatro, engatinhou de qualquer jeito para dentro. Ofegante e soluçante, ele ficou ali deitado no escuro, com o coração parecendo um tambor, um tambor enorme. Afinal, estava seguro, ah, tão seguro, é, seguro, graças aos deuses, Raven, é, graças a Raven, é, e também à todo-generosa Sedna, em segurança, afinal.

Imaginem quando ele acendeu sua lamparina de óleo de baleia, ali estava ela – aquilo! – jogada num monte no chão de neve, com um calcanhar sobre um ombro, um joelho preso nas costelas, um pé por cima do cotovelo. Mais tarde ele não saberia dizer o que realmente aconteceu. Talvez a luz tivesse suavizado suas feições; talvez fosse o fato de ele ser um homem solitário. Mas sua respiração ganhou um quê de delicadeza, bem devagar ele estendeu as mãos encardidas e, falando baixinho como a mãe fala com o filho, começou a soltá-la da linha de pescar.

– Oh, na, na, na – Ele primeiro soltou os dedos dos pés, depois os tornozelos. – Oh, na, na, na – Trabalhou sem parar noite adentro, até cobri-la de peles para aquecê-la, já que os ossos da Mulher-Esqueleto eram iguaizinhos aos de um ser humano.

Ele procurou sua pederneira na bainha de couro e usou um pouco do próprio cabelo para acender mais um foguinho. Ficou olhando para ela de vez em quando, enquanto passava óleo na preciosa madeira da sua vara de pescar e enrolava novamente sua linha de seda. E ela, no meio das peles, não pronunciava palavra – não tinha coragem – para que o caçador não a levasse lá para fora e a jogasse lá embaixo nas pedras, quebrando totalmente seus ossos.

O homem começou a sentir sono, enfiou-se nas peles de dormir e logo estava sonhando. Às vezes, quando os seres humanos dormem, acontece de uma lágrima escapar do olho de quem sonha. Nunca sabemos que tipo de sonho provoca isso, mas sabemos que ou é um sonho de tristeza ou de anseio. E foi isso o que aconteceu com o homem.

A Mulher-Esqueleto viu o brilho da lágrima à luz do fogo e, de repente, ela sentiu uma sede daquelas. Ela se aproximou do homem que dormia, rangendo e retinindo, e pôs a boca junto à lágrima. Aquela única lágrima foi como um rio, que ela bebeu, bebeu e bebeu até saciar sua sede de tantos anos.

Enquanto estava deitada ao seu lado, ela estendeu a mão para dentro do homem que dormia e retirou seu coração, aquele tambor forte. Sentou-se e começou a batucar dos dois lados do coração: Bom, Bomm! ... Bom, Bomm!

Enquanto marcava o ritmo, ela começou a cantar em voz alta.
– Carne, carne, carne! Carne, carne, carne! – E quanto mais cantava, mais seu corpo se revestia de carne. Ela cantou para ter cabelo, olhos saudáveis e mãos boas e gordas. Ela cantou para ter a divisão entre as pernas e seios compridos o suficiente para se enrolarem e dar calor, e todas as coisas de que as mulheres precisam.

Quando estava pronta, ela também cantou para despir o homem que dormia e se enfiou na cama com ele, a pele de um tocando a do outro. Ela devolveu o grande tambor, o coração, ao corpo dele, e foi assim que acordaram, abraçados um ao outro, enredados da noite juntos, agora de outro jeito, de um jeito bom e duradouro.

As pessoas que não conseguem se lembrar de como aconteceu sua primeira desgraça dizem que ela e o pescador foram embora e sempre foram bem alimentados pelas criaturas que ela conheceu na sua vida debaixo d'água. As pessoas garantem que é verdade e que é só isso o que sabem.”

Por Suely Laitano Nassif

Postado em 20/08/2010 às 15h11

6 comentários:

  1. Se não estou enganada esse conto é de uma tribo do Canadá, não é isso amiga?
    Fala de tanta compaixão, ela ocupando o coração solitário do pescador e ele devolvendo a vida a uma pessoa q foi abandonada a própria sorte.
    Eu ligo muito o mar ao amor.Amor pelo que não é tão bonito em nós, amor pelo que não é tão bonito nos outros.Como terapeuta, posso associar o conto a solidão , as pessoas q se isolam, das pessoas que são incapazes de olhar para os outros com os olhos do coração.Acabamos não sabendo nos doar e nos distanciamos das pessoas.Essa mulher esqueleto é doação, mulher amante e companheira para sempre.
    Bjão amiga do coração

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  2. Há tantas situações na relação com o outro que nos assustam, que se soubéssemos, que justamente nos aproximando delas e não fugindo é possível, ou acalmar o coração, ou compartilhar a intensidade de sua batida e transformar o medo em conquista, em amor e tantos outros sentimentos positivos.

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  3. Ana e Raquel, obrigada por comentarem! :)

    Sim, essa história é do povo inuit, uma espécie de indígenas esquimós, da região ártica do Canadá.

    E é compaixão, compaixão pura... agora que vc falou isso, Ana, me caiu a ficha de que quando comentei o texto do Jabor, e o vídeo de up, naquele post "falando de amor", eu, justamente disse isso: que esse amor que parece dar mais certo está muito mais ligado à compaixão que ao amor romântico...

    "Amor pelo que não é tão bonito em nós, amor pelo que não é tão bonito nos outros"... Lindo isso, não? Porque amar o belo, o saudável, é muito fácil... Mas amor de verdade é esse, que quando não estamos nem belas nem saudáveis, vem e nos cura...

    Raquel, é isso: se, mesmo assustados, não saíssemos correndo,e nos entregássemos, quantas possibilidades nessa nossa curta vida, não? ;)

    É esse o amor que temos que aprender a praticar, o amor que cura. :)

    Beeeijos!!! :)

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  4. Já havia lido esta história e lembro que fiquei tão encantada que reli várias vêzes e até hoje guardo uma cópia no meu arquivo.
    É um grande aprendizado!

    Beijo!

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  5. Não conhecia ainda essa história, que embora faça parte do onírico, é impregnada de verdade...
    Muitas pessoas-esqueleto vagam pelo mundo à procura de uma luz...
    Quem ama de verdade, não vê apenas ossos, ou pele, ou pernas... não foge e nem teme... nem sequer espera reciprocidade. Simplesmente ama. E é esse amor que cura todas as feridas. Até aquelas que não sangram...

    Adoro receber suas postagens no e-mail. Inclusive esse texto me inspirou a retornar ao meu Blog que ultimamente anda um pouco abandonado.

    até logo mais!

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  6. De Barba Azul para Sedna-A mulher esqueleto! essa é a minha historia. Um aprendizado sobre o amor-proprio que tal qual Sedna quando tem a oportunidade de reconhecer a possibilidade de autocura se entrega ao viver!

    Linda e tocante esta lenda!

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