Elas saíram às ruas, queimaram sutiãs, questionaram
a ordem estabelecida. Espernearam, protestaram, reivindicaram direitos,
igualdade, emprego, salário, voto. Batalharam, enfrentaram, conquistaram.
Deixaram de servir só ao lar e também de se calar à forte presença do pai de
família. Assumiram as contas, a casa, o mercado de trabalho, a profissão, os
filhos, os pais idosos, irmãos frágeis, pets abandonados e tudo o que o mundo
lhes impõe. Mostraram que podem ser ótimas em tudo o que fazem. Dentro, fora,
aqui, além, acolá. São inteligentes, espertas, multifacetadas, multitarefas,
interessadas, competentes, eficientes, fortes. Trabalhadoras. Estudiosas.
Bonitas. Invadiram a política e, apesar de ainda serem poucas, dão de dez a
zero nos quesitos honestidade, clareza, facilidade em se comunicar. Aprenderam
a gritar entre trogloditas, pra se fazer ouvir e respeitar. Ganharam votos,
visibilidade, credibilidade.
Eles
se fizeram de tontos pra não ir pra guerra. Reativos. Cederam ao que estavam
absolutamente impossibilitados de resistir. Adequaram-se ao que era muito
inadequado não se adequar. Ou fugiram. Alguns corajosos descobriram o lado bom
disso tudo. Passaram a viver coisas que não viviam, conheceram afetos
desconhecidos, desfrutam, privilegiados, de relacionamentos inteiros. Mas são
raros. Os preguiçosos procuraram novas saídas, menos trabalhosas do que mudar.
A nudez escancarada, nem mais vendida, mas publicada gratuitamente em
quantidade industrial, parece tê-los desanimado... A agressividade de quem
precisou aprender a se defender parece tê-los desencorajado... Encontram, com
facilidade, em seus iguais ou na virtualidade - esse "quase" -,
alternativas à tão dificultosa tarefa de lidar pessoalmente com o que muda o
tempo todo, com o que se supera, com o que questiona, com o que se pode viver
intensamente, mas que demanda coragem. Ah, essa virtualidade, coisa
facilitadora para os relacionamentos... Uma só tecla - delete -, um só comando
- bloqueio -, e as desavenças se resolvem "civilizadamente".
Elas
reagem às leis do mercado. Quanto mais rara a "mercadoria", mais
cara. Não basta ser bela e competente para conseguir um companheiro. Não direi
nem um "bom companheiro", porque já seria querer demais. E elas
acreditam que precisam disso, porque desde o berço foi o que lhes ensinaram.
Nos contos-de-fadas, nas histórias de princesas, nas brincadeiras de casinha...
Não bastasse isso, a que meninas modernas até resistem, a sociedade volta seu
olhar torto a toda solitária, a toda celibatária, a toda mulher que não pensa
em ser mãe. Há, também entre elas, as corajosas. Mas para que uma mulher se
sinta livre como os homens se sentem naturalmente é preciso ter muito, muito
mais coragem do que eles. Até porque todo ato de liberdade, quando praticado
por uma mulher, é sumariamente julgado pela sociedade.
Já
belas, elas ainda se enfeitam para atingir padrões que possam atrair a atenção
de um raro macho alfa. Pode-se atribuir essa obstinação à natureza, à cultura,
à publicidade... Talvez seja um fator a se considerar o fato de que, enquanto
para eles, cultuar Onã é prática natural desde sempre, para muitas delas, por
incrível que pareça, ainda é tabu. Mas, também, por incrível que pareça, muitas
ainda consideram que ter um homem a tiracolo lhes confere um status mais
elevado... Assim, andam sobre plataformas e agulhas pra alcançar a altura
"adequada" e a elegância "necessária". Espremem seus seios
em bojos emborrachados pra que seus colos fiquem lindamente estufados e seus
mamilos devidamente escondidos. (Percebi recentemente que mamilos marcados sob
blusas leves podem ser considerados ofensa pessoal, não só a homens, mas a
mulheres!). Maquiam-se, camuflam-se, rejeitam sobremesas, sacrificam-se, gastam
com tratamentos sofisticados, perdem a expressão com preenchimentos e botox,
entram na faca, negam a própria idade... São capazes de contorcionismos para
agradar à plateia enfadada...
No
frigir dos ovos, depois de tantas batalhas vencidas, ganham menos do que eles,
nas mesmas funções. Enfrentam tripla jornada e estão sempre cansadas. São
culpadas de todas as agressões de que são vítimas, de todos os fracassos
familiares, por todos os filhos-problema. Correm, permanentemente, o risco de
serem esculhambadas ou agredidas em praça pública por machistas rejeitados, sem
que um cidadão, um policial, um anjo da guarda, tome suas dores e interceda a
seu favor, covardes de carteirinha, sem pudor.
São
traídas, humilhadas, constrangidas, esbofeteadas, espancadas, estupradas, e
assassinadas quando traem ou abandonam companheiros violentos. E, às que se
negam a aceitar relacionamentos desiguais, ou se aborrecem com pavonices
masculinas, quase sempre resta a solidão.
Será
que algum dia existiu mesmo o convívio amoroso entre homens e mulheres? Será
que ainda é possível o gozo compartilhado, não só na cama, mas na vida? Desejos
coincidentes, planos comuns, caminhos percorridos juntos, respeito, admiração e
carinho? Será que a doçura do amor se perdeu irreversivelmente nesse mundo de
competição e revanchismo, ou ainda tem jeito? Será que ainda poderemos escapar
de todos os estereótipos modernos, sermos gente e não coisa a ser vendida,
encontrar não só sexo selvagem, mas sentir prazer de verdade por estar com
alguém?
Ana Lucia Sorrentino
24/11/2015