sábado, 12 de maio de 2012

MULHERES LEITORAS... minha mãe

Sou uma ilha rodeada por um mar de histórias e livros por
todos os lados: ontem, hoje e acho, parece que sempre!
Ana Lúcia Brandão


Para mim, a imagem de uma mulher com um livro entre as mãos foi uma constante na minha infância, adolescência e vida adulta. Minha mãe foi uma leitora voraz. Nas fases em que a vida não lhe permitia sonhar, os livros entravam de sola no cotidiano dela. Já que abrira mão de uma vida profissional, caminho aberto por uma bolsa de estudos na Inglaterra, em troca do amor de meu pai e da vida familiar, a leitura exerceu o papel de expandir seu universo de vida e de alimentar novos sonhos. Quanto à sua forte relação com a Arte, Arquitetura, Decoração e o de mulher moderna, ela foi resultado de uma mistura da cultura francesa com a dos filmes americanos dos anos 50 e a revista Mac Calls, que se não apresentava contos de Poe como em “A estação”, apresentava uma seção com contos de Hemingway...

Passaram pelas mãos de Miss Margareth, mais de uma vez, a obra de Joseph Conrad, Eça de Queiroz, Érico Veríssimo, Guimarães Rosa, Herman Hesse, Fernando Sabino, Fernando Namora, Agatha Christie, Miguel Torga, James Michener, Octávio Paz e tantos outros. O problema era que quando ela se voltava para um autor, ela viciava e não sossegava enquanto não lia a obra toda. Mas essa também foi mania do meu pai. Talvez essa tenha sido uma mania da geração entre guerras, do século XX, em Sampa.
Na minha família nuclear ler era como respirar: uma necessidade primordial. A leitura sempre foi motivo de conversas com novos pontos de vista e interesses inusitados – novos horizontes. Na geração de minha mãe ler foi também uma forma de participação social e educação familiar, ia da bula de remédio, passava pelo gibi do Axterix e ia até “Guerra e Paz”, aquele bitelão escrito pelo Tolstoi. Ela fez parte de uma entre as várias gerações que estudaram no Caetano de Campos, matavam aula para assistir o novo filme do Hitchcock, rondavam a Biblioteca Mário de Andrade e tomavam sorvete na Vienense ou chá no Mappin. Fruir a leitura, o cinema, a música clássica e popular, ver uma boa exposição de arte eram exercícios constantes, assim como hoje se faz aula de aeróbica. Trocavam-se impressões de leituras. Os livros rodavam pelo restante da família e entre amigos. É bom lembrar que só existia o rádio como meio de comunicação. A televisão não existia nem em sonhos. As noites eram feitas para se ler, jogar cartas com os amigos ou ir à boate. Sair com amigos só nos finais de semana. Esse foi o tempo de formação de vida de meus pais. A curiosidade pelo mundo ao redor e por diferentes línguas e culturas foi uma constante na vida deles. E uma leitura sempre aberta ao novo, ao desafiante, ao desconhecido que se considerado bom era imediatamente incorporado – de Sidarta à ginástica sueca.
Ler outras línguas? Fácil, estudava-se um pouco a língua, comprava-se livros, assistia-se aos filmes e pronto, mais uma língua e cultura incorporadas. Minha mãe veio de uma família numerosa, toda feita de leitores. Gente falante, sempre trocando impressões de leitura e de mundo. A curiosidade cutucante de Emília do Sítio do Picapau Amarelo sempre esteve entre eles. As expressões lobateadas como “torneirinha de asneiras” e outras tantas faziam parte das gírias e usos da linguagem falada.
Ao esculpir minha mãe leitora, tenho de confessar que houve um gênero que minha mãe foi muito chegada, a poesia. Que eu me lembre (e memória é uma coisa puladinha, como dizia Sylvia Orthof...) houve só dois únicos poetas lidos por ela na forma de livro: Fernando Pessoa e Pablo Neruda. E olha que ela foi musa de um poeta na sua adolescência... o poeta amigo de seu irmão Paulo, Paulo Bomfim. E o curioso é que a Poesia foi um gênero que ela leu com ela mesma, ensimesmada, no diálogo com seus pensamentos e sentimentos. Ah, essa menina Margarida...
Já a música de Edith Piaf, Frank Sinatra, Beatles e Gilbert Beacaut contavam com o coro dela na hora de cantar. Eu adolescente, morria de vergonha. Que bobagem. Com o tempo, fui descobrir que minha mãe era mesmo “um ser narrativo” - as músicas cantadas por intérpretes, todas - eram histórias de amor, correspondidas ou não. Ali estava a expressão do seu lado passional, porque nos demais ela foi bem enigmática, um ser talhado para ser mesmo “musa” de um poeta.
O que ela e meu pai nunca imaginariam era que esse ambiente me levaria a ler muito e a trilhar o universo da leitura e da literatura como parte fundamental da minha vida profissional. Para eles foi um susto, para mim, algo natural como as águas de um rio que deságua no mar. O meu avô materno, que passou a vida inteira dando aulas de Língua e Literatura, já aposentado e curtindo um pijama, adorou. Afinal entre tantos netos, só uma enveredou para o seu lado: contar histórias, ler histórias, comentar histórias, assistir à histórias.

Um dia, entre livros lidos e livros para ler, minha mãe pegou um livro chamado “Zigue-Zague” da Fanny Abramovich que eu estava lendo para o trabalho. Ela conhecia a Fanny da televisão, do jornal e de alguns comentários meus. Aí, por coincidência, a Fanny ligou em casa. Ah, não teve jeito, mamãe rasgou a seda para o livro dela. E a Fanny, claro, gostou um bocado. E como essa investigação parte do mundo, mas vai navegar mundo afora, eu escolhi a Fanny Abramovitch como primeira leitora a ser entrevistada pelo Mulheres leitoras. E entrevista feita ao vivo e a cores, com tiques, toques, altos e baixos. Por quê ela primeiro? Porque minha mãe leu Fanny e Sylvia Orthof com gosto (uma dupla de riso impagável, tipo “Gordo e Magro”, sabem?), o mundo anda cabisbaixo e Fanny que foi grande parceira de pensações da Sylvia Orthof; é alto astral, cutuca pensamentos e desarma armadilhas caretas. Portanto, aguardem. Fanny Abramovitch será a primeira entrevista das muitas que o “Mulheres Leitoras” fará.

Vamos navegar nos mares nunca dantes navegados de Fanny.
Ana Lúcia Brandão

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Um passe-livre pras mães nesse domingo


          
           
            Domingo que vem é dia das mães.
            Fiquei pensando que presente eu poderia dar a todas as mães, sem muito risco de não agradar... Difícil, hein...
            Mas... então pensei que, talvez, o melhor presente fosse um passe-livre.
Algo que pudesse libertá-las, que fosse por apenas um dia, melhor ainda se por uma semana ou mais, quem sabe por toda a vida, da mistificação da figura materna.
            Que as liberasse, por algum tempo, de tudo o que elas escutaram sobre ser mãe e que permitisse que elas voltassem a ser simplesmente seres humanos. Já imaginou que viagem?
            Que pudessem fazer como os filhos, e se espalhar como água. Acordar e sair pra trabalhar sem se preocupar com arrumar as camas ou deixar a cozinha limpa...  Ir e vir livremente, sem dizer pra onde, nem com quem. Desligar o celular e deixar cada um por sua conta.
            Voltar pra casa sem ter que pensar na fome de ninguém. Passar numa lanchonete, se fartar, comer uma bela sobremesa e nem pensar em levar um pedacinho pra casa. E sem culpa, olha só, sem culpa...
            Aliás... a libertação da culpa seria o brinde maior desse passe. A culpa, essa malvada...
            Que as mães pudessem, por um tempinho, amar sem tanta responsabilidade. Que simplesmente amassem, e conseguissem não se sentir o motivo de todo bem ou todo mal que acomete a seus filhos. Porque não são mesmo...
            Esse passe-livre poderia levá-las prum mundo em que todos os clichês já tivessem sido esquecidos. Em que ser mãe não fosse padecer no paraíso, mas curtir aqui na Terra mesmo. Em que o amor de mãe fosse, sim, condicional, porque o amor incondicional pode criar monstrinhos, e isso é perigoso. Um mundo em que mães têm vida sexual, amigos, segredos, privacidade... Um mundo igualzinho ao de todo mundo, onde são permitidas pequenas transgressões, pitadas de irresponsabilidade, esquecimentos, porta do quarto trancada... onde, em vez da mãe ter obrigação de cuidar de todo mundo, todo mundo tivesse obrigação de cuidar de todo mundo, inclusive da mãe. Coisa booa!
            Brincadeiras à parte, eu quero mesmo é dar os parabéns a todas as mães. De qualquer sexo ou idade. Mães totalmente padrão ou não. Mães biológicas e adotivas. Pais que se viram pra ser também mães, quando é preciso. Irmãos que cuidam dos irmãos como mães. Amigos, que, muitas vezes, acolhem e acarinham como uma boa mãe.
            Mas também quero parabenizar as mulheres que, por um motivo ou outro, tiveram que abrir mão de ser mães. As que optaram por não sê-lo, movidas por um amor que não podemos dizer não-maternal. As que, por algum motivo, deram seus filhos à adoção, acreditando que estariam melhor em outras mãos.
            E quero me solidarizar com as que não são convictas de serem “boas mães”. Fiquem tranquilas. Imagino que quase todas nós não sejamos convictas de sermos “boas mães”...    E se formos entrar aqui no mérito do que será mesmo que é ser uma “boa mãe”... hum... isso vai longe...
            Também quero lembrar daquelas que sempre quiseram ser mães, mas por algum motivo, não puderam. Tenho certeza de que não deixarão de exercitar seus dotes maternos com todos os que convivem. Porque o desejo da maternidade nada mais é do que um desejo de se dar, e de praticar o amor. E isso podemos fazer sempre, seja lá com quem for.
            E quero confortar aquelas que, momentaneamente, ou não, têm problemas  de relacionamento com seus filhos. Porque nada garante, nem mesmo um trabalho muito bem feito, que nossos filhos se darão maravilhosamente bem conosco. O relacionamento entre mães e filhos é todo entremeado de crises, e nelas tanto mães como filhos crescem. É uma aprendizagem constante, em que, muitas vezes, trocamos de lugar com nossos filhos. Em que vem deles a orientação, a ponderação, o bom-senso. Em que, não raramente, são eles que se preocupam com nossa imaturidade e com nosso futuro.
            Enfim: parabéns a todos nós, porque não é fácil... ;)                       
                                                                       
                                                                                Analú                                                    

sábado, 5 de maio de 2012

Mães.. em Chico Buarque


ARQUÉTIPOS DO FEMININO NA OBRA DE CHICO BUARQUE


- MÃE - Meu Guri - 1981
Eu consolo ele, ele me consola.
Boto ele no colo pra ele me ninar.
                               
 
- MÃE - Angélica – 1977
“só queria agasalhar meu anjo e deixar seu corpo descansar [...] queria cantar por meu menino que ele já não pode mais cantar [...]


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Estas são duas figuras, fortíssimas representantes de aspectos do feminino nem sempre lembrados, mas presentes e importantes: a defesa da vida e a maternidade ferida.

Transcrevo parte do texto de Figuras do Feminino nas Canções de Chico Buarque, de Adélia Bezerra de Menezes, livro que tem sido suporte valioso para minhas pesquisas e estudos.

Após preciosas análises das letras das músicas Angélica e Meu Guri, Adélia arremata:
“Duas mães, dois filhos mortos, o “anjo” e o marginal- ambos assassinados, um pelas forças da repressão política; outro eliminado pelas forças da repressão policialescas da opressão socioeconômica. Uma tem consciência, sabe que perdeu o filho, e a partir desta consciência, pode estruturar o seu luto, e emprestar um sentido para sua vida: cantar por seu menino, que ele não pode mais cantar. E a outra, analfabeta, nem pode ler as legendas da foto do jornal, e decodifica invertidos os signos da morte: 'O guri no mato acho que tá rindo/acho que tá lindo, de papo pro ar.' 

O que torna quase que mais patética a mãe do guri marginal é que a alienação atinge o fundo, a desumanização vai longe: ela perde, mas não sabe que perdeu. Ou melhor, ainda não sabe: enquanto em Angélica a dor é flagrada in fieri, em Meu Guri é mostrada em véspera, no estágio absolutamente anterior ao seu deflagrar. A ironia: o mais cruel dos tropos. Meu Guri devassa o momento – álgido – antes da dor, e enfoca a questão da impossibilidade de consciência e da ingenuidade, fruto da alienação humana.
“Implacavelmente, Chico Buarque desvenda o desamparo feminino, e a procura de proteção que, paradoxalmente, por vezes a maternidade mascara.”

Por Ana Nunes