sexta-feira, 30 de março de 2012

Você e Deus



Quem começa a se interessar por filosofia logo percebe que Deus e o Amor são temas recorrentes nos textos filosóficos.
Em  “Amor”  André Comte Sponville, filósofo francês da atualidade, afirma ser esse assunto o mais interessante de todos. Contra os  que não concordam  com  essa ideia, Comte argumenta que, mesmo que não estejamos falando de amor, estamos sempre falando do amor que temos por algo ou por alguém. 
             Assim como o Amor,  Deus parece ser, senão o assunto mais interessante, um assunto quase sempre inevitável para os filósofos. Se ele não for o tema central da reflexão, acabará sendo a causa ou solução para quase  tudo  que não se consegue compreender ou assimilar.                                                      
            Muitas vezes a motivação primeira dos questionamentos filosóficos é um profundo sofrimento por conta de imposições religiosas baseadas em ideias fantasiosas sobre Deus. E não é raro que, na busca pelas suas verdades, o filósofo acabe se enroscando em suas próprias teorias e termine apelando para Deus.  Não é muito difícil entender o porquê disso.
Deus é uma daquelas verdades que encontramos prontas quando chegamos ao mundo. Recebemos essa ideia já elaborada  e  ao longo de toda a nossa vida,  tentaremos entendê-la e estabelecer com ela a melhor forma possível de relacionamento.
Mal aprendemos a pronunciar “mamãe”  e já estamos às voltas com “Papai do céu”.  Crescemos convivendo o tempo todo com  expressões como  “Vai com Deus, Deus é mais, Deus te acompanhe, Deus te ajude, Deus te Guie... Deus castiga. Deus sabe o que faz. Deus escreve certo por linhas tortas. Graças a Deus... Meu Deus!” – Como é que poderíamos conceber com facilidade a ideia de um mundo sem um criador?  
Com todo respeito, e pedindo aos filósofos de carteirinha que me perdoem, eu acho fantástico imaginar que Descartes tenha se torrado os miolos pra concluir que, se havia nele uma ideia de Deus, era porque o próprio Deus havia colocado essa ideia nele. Por acaso Descartes vivia em algum universo paralelo,  isolado de tudo e de todos?
À medida que vamos adquirindo autonomia, passamos a questionar as verdades preestabelecidas e a consequência disso é questionarmos também esse Deus que existiu desde sempre e que suscita tanta polêmica no mundo todo.
Enquanto muitos se contentam com um Deus herdado outros muitos, pelos mais variados motivos, começam a duvidar dele. Considero natural que em certas fases da vida nos sintamos crentes, enquanto que, em outras, fiquemos céticos. Mudar de opinião faz parte do nosso crescimento.
Muito longe de pretender aqui defender a existência ou não de um Deus, o que quero propor é que pensemos sobre as confusões que se criam em torno de Deus e da religião.
Ao longo do ano passado, em vários momentos, durante as aulas de Filosofia Antiga do curso que frequento, percebia-se uma inquietação de alguns alunos quando o professor tocava no nome de Deus. Eles se sentiam incomodados porque, por serem ateus, queriam evitar Deus a todo custo. Num certo momento  perguntaram ao professor se quando ele dizia “Deus” estava se referindo ao “Bem”.  Aquilo criou uma espécie de saia justa, porque ficou evidente que, a cada vez que o professor fosse usar o nome de Deus, se perguntaria o quanto estaria incomodando aqueles alunos ateus. Desnecessário isso. Será que esse alunos não poderiam simplesmente receber a mensagem e decodificá-la silenciosamente? Se para eles “Deus” significava “Bem”, a questão estava resolvida. Eles poderiam , por algum respeito aos alunos não ateus, deixar isso passar batido. Mas não. Havia ali uma enorme vontade de combater a Deus.
Certa noite, encontrei a seguinte frase na lousa: “Deus não existe e não faz falta”. E foi então que percebi claramente o quanto havia de ressentimento ali. E a partir desse momento começou a ficar claro para mim que a presença de Deus na vida do ateu é, muitas vezes,  algo muito forte. Talvez mais forte do que na vida daqueles que naturalmente aceitam Deus como uma verdade indubitável. Excetuando os ateus que simplesmente não acreditam e para quem isso não constitui problema, muitos ateus parecem ser, na verdade, ressentidos.  E se há ressentimento é porque havia uma expectativa que foi frustrada.
Pergunto: quem gerou essa expectativa? Ouso dizer que não foi Deus.  Se existe um Deus, decerto ele  nada tem a ver com as fantasias que os homens criam usando-o como justificativa para manipular o ser humano.
Por conta de tradições religiosas podemos crescer acreditando que Deus é um pai bondoso que jamais permitirá que o mal chegue até nós. Numa barganha que só a razão humana poderia arquitetar, ele nos pouparia da dor e satisfaria nossos desejos em troca de orações, louvores e, quem sabe  até de um dízimo. Em algum momento abrimos os olhos e percebemos que não há privilegiados e  que o mundo está cheio de dor e de mal. E nos decepcionamos profundamente com Deus. É comum nos depararmos com alguém que, de repente, coloca em dúvida a existência de Deus por conta da morte de um ente querido, ou porque percebeu, num estalo, que há injustiça no mundo. É interessante observar que os insights, na maior parte das vezes, se dão quando a desgraça nos toca bem de perto. Decepcionados, passamos a combater Deus, porque nos sentimos traídos.  Mas... pense bem: foi mesmo Deus que nos prometeu um mundo de maravilhas?
Vamos partir do pressuposto de que Deus exista. Se Deus é uma ideia de supremo BEM incrustada na vida das pessoas ao redor do mundo todo e, portanto, quase unanimidade, é concebível que em nome dele se promova a segregação e o desacordo?
Embora saibamos que o próprio conceito de Deus é criação do homem, podemos encontrar nele um sentido. Mas, é preciso ter em mente que tudo o que se fala a respeito de Deus é criação do homem. A fértil criatividade humana produziu  uma variedade enorme de religiões, cada qual com suas particularidades, defendidas com unhas e dentes por seus adeptos. Decorrem daí as intrigas e disputas religiosas, os  jogos de poder e o fundamentalismo, que não raro culminam em guerras. Você acha mesmo que Deus acharia bacana isso?  Cada religião pode forjar todo tipo de desculpa para justificar o injustificável.  O que é uma contradição inaceitável é que, em nome de Deus,  seres humanos fiquem se futricando e se aborrecendo, tentando fazer valer suas próprias convicções.
Há pouco tempo bati um longo papo com uma mãe de família que apanhara durante 24 anos de um marido desequilibrado. Essa mulher atravessara a vida desejando a separação para tentar, finalmente, ser feliz. Ela conseguiu. Assinou o divórcio como quem recebe uma carta de alforria. Mas, então, o pastor com quem costuma se orientar lhe disse com todas as letras que ela jamais poderia casar-se novamente, porque está escrito na Bíblia que uma mulher divorciada não tem direito a um novo casamento. Percebi nela uma enorme impotência para questionar tal condenação à infelicidade perpétua. Será mesmo que Deus condenaria alguém a viver uma vida apanhando e ainda lhe castigaria com a proibição de viver um novo amor? Afinal, Deus não gosta do amor? É concebível isso?
Outro dia alguém postou no facebook uma publicação sobre uma súbita implicância das lésbicas com crucifixos em lugares públicos. Seguiu-se ali uma enxurrada de comentários em que se percebia o quanto de confusão existe sobre ser Católico ou Cristão, ser o Brasil um país laico, sobre serem as lésbicas atéias... enfim, uma bagunça. Mas, abstraindo-se as opiniões pessoais, o que restava ali era uma disputa pela posse da razão. E uma agressividade. Mesmo que às vezes velada, uma grande agressividade. Em nome de Deus. 
Lembrei então de um vídeo em que Drauzio Varella dizia, com muita serenidade, que era ateu desde sempre, e que respeitava todos os religiosos, mas percebia uma grande violência dos religiosos contra os ateus. Como se ateus não pudessem ser homens de bem. São equívocos gerados pelas religiões.   
Todas as vezes que questionei os que defendem a Bíblia como verdade absoluta, perguntando-lhes, afinal, quem escreveu a Bíblia, a resposta que tive foi que foram homens inspirados por Deus. Pois é... mesmo que se aceite que a inspiração veio de Deus, o recado foi passado através da razão humana. 
Quando comento com religiosos sobre a dificuldade que tenho em compreender os textos bíblicos a resposta também é recorrente: é preciso de orientação para entender a fundo as mensagens bíblicas. Pois é... digo eu, novamente. Essa orientação virá de quem? De homens que interpretaram a Bíblia e que me orientarão de acordo com suas próprias interpretações, que, na verdade, não são muito próprias,  porque eles também tiveram uma orientação prévia. Ou seja: não escapamos da interpretação humana.
É assim, graças a interpretações humanas, e pelo não questionamento dessas interpretações, que vemos mulheres agoniadas se sentindo culpadas por desejar viver um novo amor. É assim que vemos grupos imensos cantando louvores motivados pela crença de que Deus ficará feliz com isso. É assim que mulheres estupradas ainda precisam passar por verdadeira tortura psicológica para fazer um aborto. É assim que relacionamos prazeres carnais à culpa. E é assim que, em lugar de nos regozijarmos com uma vida plena, passamos a vida nos debatendo entre aquilo que de fato sentimos e aquilo que as religiões pregam.
            E é assim que concluo que as religiões apequenam Deus e promovem a segregação. E que grande parte dos que se revoltam contra Deus está, na verdade, revoltada contra as religiões.
            Minha sugestão é que, já que a ideia de Deus é algo tão forte e plausível para muitos, e inadmissível, mas ainda assim muito forte, para outros, tentemos pensar nisso sem a interferência das interpretações religiosas.
            Podemos olhar o mundo à nossa volta, rever todo o percurso da nossa vida, sentir o que vai dentro de nosso coração, ouvir nossas próprias respostas e concluir algo. Sabendo, de antemão, que somos livres para repensar Deus enquanto vivermos.
            Porque, se há um Deus e se é importante para você compreendê-lo, isso é trabalho seu.
Isso é entre você e Deus.

Analú

11/03/2012

terça-feira, 13 de março de 2012

A Literatura enquanto exercício vital! – parte 4

ENTREVISTANDO LÍVIA GARCIA-ROZA



Quando perguntei se Lívia tinha algum ritual para escrever, ela me disse que não. Escreve todo dia. Escreve na parte da manhã e à noite, deixa um caderno perto da cama. Prefere escrever em blocos amarelos de papel e depois passar para o computador. Posta todo dia na internet. Escreve bastante e quando as idéias vêm de forma atropelada, as anota e as guarda para depois. Depois de escrever um romance no papel, quando ele está mais estruturado, passa para o computador. Disse então, em tom confessional, que sempre escreveu besteiras. Escrevia nas paredes, nas carteiras da escola, nos banheiros, na areia da praia e também fazia isso oralmente. E veio com uma frase curta, mas profunda: “Escrevo porque é necessário escrever”. Disse que o ser humano não pode não narrar. Se não escreve ficção, o ser humano precisa se contar. Somos seres da palavra. E eu tenho isso muito forte em mim. Quando termina um romance e ele é publicado não o relê mais. “Perco a relação com a história depois de publicada. Em compensação os livros tornam-se casas, casas às quais posso retornar de vez em quando, como agora em que estamos falando sobre eles”.
 

Quanto ao público de seus livros ela mesma diz que as histórias brotam sem faixa etária. Falam da natureza humana. E afirma: “É preciso dar crédito à Freud, quando disse que o amor e o ódio são faces de uma mesma moeda. É da natureza humana isso. Somos feitos de conflitos. A família é um canteiro de problemas. A família se suporta, mas há momentos em que há carinho e ai vem a culpa por odiar. Faz parte da vida. Tem uma hora em que não se quer a família por perto. Sentir essas coisas é vida. Faz parte da vida. E a Literatura é o que vai desarrumar você. E te fazer pensar. Pensar em algo inédito, às vezes bizarro. É isso que move a gente. E não todo mundo pensando igual. Claro que dá trabalho e ameaça ser diferente. O sentimento de não pertencimento que dá ser diferente não é fácil. É também preciso se adaptar quando a banda toca. Ou arrisca-se a ficar falando sozinha. Mas temos de encarar essa diferença, esse é o nosso bem maior. Só assim temos o que trocar. Os casamentos quando entre diferentes são possíveis. Trazem novidade um ao outro – e o outro é o Outro. Claro que há momentos em que temos recaídas infantis. Principalmente quando se é jovem. Ser jovem é um sofrimento. Depois se vai aprendendo a lidar melhor com o mundo. É quando as coisas criam nuances.”

Por fim, para arrematar a entrevista perguntei para ela da sua relação com a infância. Seu texto infantil revela a diferença de olhares que existe entre o universo infantil e o adulto. A personagem Betina resolve querer um elefante de verdade para tomar conta de suas bonecas. Quando finalmente se faz ouvir e conhece um elefante de verdade, percebe que o tamanho do elefante é tal que poderia amassar suas bonecas. Volta para casa inconformada e já no dia seguinte começa a pensar em ter... uma girafa. Betina vê o mundo de um jeito e os pais de outro. Eu então lhe disse que me espantei em ver a visão tão contemporânea que ela tem sobre a infância. Betina é uma criança de hoje. As personagens de Lívia são seres que você pode encontrar nas ruas das cidades brasileiras a qualquer hora e minuto. Ela ri dessa minha observação. Ela então contou que sempre teve sua criança interior muito solta e que seu olhar tem a ver com o humor por isso. E terminou com a frase: “É preciso ir além da dor. Precisa dizer mais?”

Eu, se fosse você, iria atrás da obra dessa autora. Não é fácil encontrar seus livros nas livrarias. É preciso encomendá-los, porque sua obra é um desses tesouros escondidos que vivem à parte da mídia.

Por Ana Lúcia Brandão

quinta-feira, 8 de março de 2012

Dia Internacional da Mulher - 2012


Elas sorriem quando querem gritar.
Elas cantam quando querem chorar.
Elas choram quando estão felizes.
E riem quando estão nervosas.

Elas brigam por aquilo que acreditam.
Elas levantam-se para injustiça.
Elas não levam "não" como resposta quando
acreditam que existe melhor solução.

Elas andam sem novos sapatos para
suas crianças poder tê-los.
Elas vão ao medico com uma amiga assustada.
Elas amam incondicionalmente.

Elas choram quando suas crianças adoecem
e se alegram quando suas crianças ganham prêmios.
Elas ficam contentes quando ouvem sobre
um aniversario ou um novo casamento.

Pablo Neruda

sexta-feira, 2 de março de 2012

Três Gerações


Linda Daly Meshil

Há três mulheres jantando numa fria saleta cor de salmão
refletidas numa mesa de madeira polida, longa e profundamente marcada
antes beleza elegante e intocável, hoje ordinária e útil
Manchas e espirros de frutas não contam
Gotas de sangue de carne não importam
Elas comem com a indiferença de velhas amigas
O líquido derramado não lhes chama a atenção
E o escorregão da faca pode ser esquecido

A velha senhora reina em silêncio sobre a longa mesa de cicatrizes
Tão antiga como o hábito que soprou vida na matéria
E pronunciou as palavras “nos criou”
Seu prato está limpo
Exceto pela faca e garfo ali cerimoniosamente depositados
Uma vasilha com ameixas maduras e suadas dorme
intacta por suas mãos retorcidas
Ela está satisfeita, contente por ter terminado a refeição antes delas
Ela espera para sair da mesa em sinal de cortesia para com
As que ainda não terminaram.

A jovem senta-se em frente à velha e com seu dedo
Acompanha um risco na superfície da longa mesa de cicatrizes.
Ela viaja por toda sua extensão para chegar até a vasilha com frutas suadas.
Seu sabor e textura agradam-lhe
A pele firme e macia escorrega ao seu toque e escapa até o meio da mesa
Onde é resgatada rolada de volta e fatiada
Satisfeita
Só resta um caroço do lado do prato
E o sangue da fruta em suas mãos

A meio caminho entre as duas está sentada uma outra mulher que olha para a marca redonda
e molhada do suor no meio da longa mesa de cicatrizes
Testemunha dos crimes de roubo e assassinato
Nada se ouve ou diz entre elas
A velha senhora logo sairá
A mais jovem ficará para a sobremesa e a mulher do meio
raspará os restos mortais da festa muda,
mirando-se no espelho da sala de jantar onde verá
envoltas em rosas três mulheres
Uma tão antiga como o ar
uma jovem
e uma a meio caminho entre cá e lá
em suspenso pelos fios silentes do anseio de ser as outras duas.


Por Ana Nunes