segunda-feira, 19 de setembro de 2011

Fazendo um passeio em uma livraria...

Hoje estive num setor de livros raros da Saraiva. Fui atendida pela responsável que se chama Ana Lúcia Brudeika. Deve ser quase da minha idade e é uma leitora voraz, graças ao fato de ter freqüentado a Biblioteca Monteiro Lobato na sua infância, com sua irmã. As leitoras se encontram das formas mais inesperadas. Lá, entre muitos tesouros, descobri uma série de livros chamada "Coleção Rosa", do início dos anos 60 e publicada pelos anos sessenta todo, com traduções de romances melados alemães (sabiam que alemão já escreveu romances melados? Eu nunca imaginaria e olha que convivi com eles por volta de três meses diariamente).

A coleção é mesmo cor de rosa e ela se manteve com 68 títulos por pelo menos uma década! Tem um best-seller nela chamada "A mulher do rádio" de Isa Silveira Leal. Leal foi leitura da minha infância. Ela escreveu uma série de livros para meninas. Meu pai me deu “Glorinha e o mar”, aos doze anos, e eu adorei. Aí me comprou “Glorinha bandeirante” que achei o máximo, porque a protagonista viaja para Salvador e tem um namoro com um guia de turismo de Salvador. Entusiasmado com minhas leituras, meu pai comprou “Glorinha e a quermesse”. Super furo. A tal Glorinha, nesse livro está com uns dezoito anos e resolve namorar a sério, pensando em se casar. O livro era tão anos 50, um horror! Toda a magia e aventura dos livros anteriores não deixam rastro nesse. Larguei Isa Silveira Leal para todo o sempre depois de tamanha decepção.

Eu que vivo farejando novidade, ando voltada para as novidades do passado. Nesse acervo antigo descobri ainda, para minha surpresa e dos sobrinhos de meu avô materno, que ele publicou 17 livros didáticos, sendo 16 de ensino da língua francesa. Os livros do Professor Cleófano Lopes de Oliveira. Mantiveram-se no mercado editorial da Saraiva por volta de vinte anos, junto aos de Português técnico, de Silveira Bueno e outros de Napoleão Mendes de Almeida. Nessa eletrizante descoberta, desse avô mágico que tive, publiquei “O avô mágico”, em 1993, e ele esteve entre as crianças até 2005, graças à divulgação da Editora Scipione, do vídeo sobre o livro realizado por uma professora de pré-escola da prefeitura de São Paulo e ao livro didático de Zélia Almeida, chamado “Alfa, beta etc. Língua Portuguesa” - 1º. Ciclo, volume 2, publicado pela Dimensão, editora mineira.

Meu avô mágico que nasceu em Batatais, estudou com José Olympio, foi amigo de Sud Minucci e jogou xadrez por anos com Silveira Bueno, foi um feminista porque formou professoras da Escola Normal Caetano de Campos por décadas, nos áureos tempos (anos 30 a 60 do século passado). Vovô deu aulas no Liceu Pasteur anos a fio. Quando nasci ele já tinha se aposentado. Falava muito de literatura, cantava hinos franceses, tinha um humor afiadíssimo e exigente quanto ao português falados pelos netos. Ele faleceu em 1987, momento doloroso em que descobri que eu me envolvera com livros e crianças inspirada nele. Em 1993 restabelecemos contato por meio do livro infantil, que me trouxe muitas alegrias e convivência com crianças. E agora ele retorna com essa novidade do universo da cultura francesa. Pus-me a pensar que se algum filho dele, genro ou sobrinhos não tivessem se tornado leitores, ele teria enterrado no jardim.

Na família, o que restou dela, ficou o mistério. Adolescente, vovô foi viver em Liége, na Bélgica, para estudar Medicina. Isso no início do século XX. De Batatais para Liége. Ele viveu por volta de dois anos na Bélgica e voltou porque o pai falecera e ele era o filho mais velho de oito. Da Bélgica ele manteve gostos gastronômicos e algumas crônicas de suas paqueras e aprontações de rapaz. De volta a Batatais casou-se e veio morar em São Paulo. Dali um tempo surgiu o Colégio Caetano de Campos e lá foi ele ministrar aulas de português, redação e francês. Da Medicina só sobrou a hipocondria, que ele manteve no estilo de Moliére em “O doente imaginário”. Dezesseis livros de francês (textos franceses, francês glorioso, o melhor do francês, gramática francesa, uma doideira). E toda essa produção publicada entre 1941 e 1960!!!!! Tem um livro de 2º ginasial de textos franceses em que há comentários de professores sobre a excelência do livro de profissionais de Batatais, Casa Branca, Taubaté e até um comentário do O Estado de São Paulo.

Sabem quantas viagens ele fez à França durante sua vida? Ne-nhu-ma.

Para minha mãe, a convivência com a língua e cultura francesa parece que fazia parte dos gens. Lembro que peguei cinco traduções de francês de textos juvenis para fazer com ela (eu não sei praticamente nada de francês). Ela traduzia e eu punha no computador. Nossas discussões eram porque ela se aferrava à etimologia das palavras e eu à estética literária. O chato é que a editora, no final, quebrou o contrato com a Nathan francesa e as traduções ficaram na gaveta. O Lino de Albergaria apreciou muito o trabalho final. Ele era o editor da Dimensão. Não me esqueço do quanto fiquei boquiaberta com o conhecimento dela. Assim como vovô, meus pais sempre foram uma caixinha de surpresas, quando o tema era Ciências Humanas.

No final dessa tarde, na Saraiva, a Sra. Brudeika me levou a um passeio entre as estantes dos livros antigos da editora. Ai entrei no meio das estantes cheias de livros antigos, e os livros do vovô acenavam para mim como se tivessem mãos. “Edições com lombadas e cores de capa diferentes” de várias edições de “Flor do Lácio”, seu livro de redação para ginásio e colégio. Como eu disse em certo momento no texto de o “Avô mágico” a respeito de Napoleão Bonaparte: “um imperador da França ou de Batatais? Bem, tanto faz”, descobri em uma tarde de segunda-feira que meu avô impera no passado da Editora Saraiva. É mesmo curioso como meu avô se tornou personagem literário e agora retorna com toda força me contando de seu passado de escritor, que eu desconheceria se não fosse uma profissional muito curiosa. Gozado mesmo é como os homens de antigamente separavam completamente a vida familiar da profissional. E se eu fiquei boquiaberta, gostei mesmo foi de ver os sobrinhos dele, Caio e Nísia com mesma expressão no rosto que eu fiquei na frente da Sra. Brudeika.

Ana Lúcia Brandão

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

O Mundo


Ainda menina mimada, pernas finas e um leve e ingênuo corpo de pura credulidade, vi o Mundo sentado num canto, como que me esperando, receptivo, e cedi à tentação: sentei no colo do Mundo. Embora agitada, e mal podendo me conter ali, tanta coisa a se viver, o colo que o Mundo me oferecia era tão confortável e caloroso, e sua aceitação de mim tão grande, que rapidamente me habituei a recorrer a seu aconchego sempre que cansada da agitação da Vida.

Vez ou outra me esquecia de tudo o que não fosse Mundo. Recostava a cabeça em seu peito, sentia suas mãos firmes me segurando e chegava mesmo a cochilar, em total abandono.

Com o passar dos anos, a certeza de que o Mundo estaria ali, me esperando, sempre que o procurasse, se consolidou e passei a ter nele meu porto seguro.

Certa vez, mais encorpada, pés já tocando o chão, senti que talvez pesasse e causasse algum cansaço no mundo. Percebi uma tentativa dele em me acomodar melhor, como fora tão natural até então. Disfarçadamente, voltei-lhe a minha atenção.

E pela primeira vez, aflita, percebi que o mundo respirava. Simulei cansaço e encostei a cabeça, como tantas vezes já fizera, em seu peito. E pude ouvir o bater acelerado do seu coração. Lembro-me de ter me sentido arrepiar. Por instantes, me falhou o ar. E fiquei quieta, sentindo o pulsar de um mundo que até então parecia estar ali apenas pra me acomodar. Olhos fechados, deixei-me arrebatar, horrorizada, pela incrível constatação de que o Mundo vivia, e talvez sofresse com minha lépida alienação. Senti raiva da Vida, sempre me ocupando e me envolvendo em suas tramas. Com certeza era dela a culpa de tamanha desatenção.

Então não tive mais sossego.
E se a qualquer momento o Mundo não mais quisesse me acolher? Sofri antecipando uma falta até doída da firmeza de suas mãos. Temi não mais poder sentir aquele respirar e o pulsar cadenciado do seu coração.


E resolvi, intimamente, que seduziria o Mundo.
Mas... tão pouco caso fizera dele, que o pobre se ressentira e agora meus esforços pra que se mostrasse eram vãos. O Mundo se fechara numa timidez crônica e percebi que teria que partir de mim o esforço pra uma aproximação. Não mais me joguei em seu colo com estabano de menina. Sentava-me de lado e, sempre que possível, buscava seu olhar. Em vez de apenas esperar que suas mãos me amparassem, passei a tocá-las carinhosamente. Vez ou outra, as mãos do Mundo respondiam ao meu toque com um leve tremor. Certo dia encostei meu rosto ao dele, senti seu calor e vi, claramente, o mundo corar. Noutra ocasião corri os dedos por seu peito e ele suspirou.

O Mundo, em seus movimentos silenciosos, em sua relutância em se mostrar, se tornou um desafio... Que imensa vontade me dava de quebrar nossas barreiras, atingir o coração do Mundo e com ele namorar! Tive que ser paciente e ardilosa. Me mostrar para o encorajar. Aceitar sem julgar. E nunca, nunca, a seus pequenos arroubos de auto-exibição, me assustar.

Aos poucos, fui ganhando sua confiança.
Hoje, já consigo tocar o Mundo com mais intimidade. E embora ele ainda se retraia ao toque dos meus lábios, desconfio seriamente que o Mundo me deseje.


Amo tanto o Mundo e seus mistérios que chego a sofrer de tanto amar...
Nalgum dia ainda me embrenho por um desses labirintos da vida e encurralo o mundo num beco sem saída. Quero despi-lo e fazer com se mostre, sem pudor ou qualquer mágoa dos meus tempos de menina. Se bobear, ali mesmo, a céu aberto, me declaro apaixonada.

Quero ver então se me vendo desarmada e atrevida, e me reconhecendo mulher feita, o mundo terá, afinal, coragem de me penetrar.

Ana Lúcia Sorrentino
Escrito em 7 de maio de 2011

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

A menina que voa...


Essa menina que voa...
por que espécie de libertação foi acometida,
pra ter coragem de voar e ainda levar no rosto
tanta leveza e entrega?
Ela voa, e voa tão confiante,
que tem os olhos fechados,
as faces coradas, cabelos vermelhos...
vermelhos esvoaçantes...
Menina que voa,
o que deixou lá embaixo, no chão de sua vida?
Que nós desatou, pra se ver livre de vez
do que a amarrava ao pé de pesada cama?
Que medos superou,
que monstros enfrentou,
de que crenças se livrou?
As crenças,
as crenças, menina...
Aquelas que você imaginava possuir,
mas que te possuíam.
Como foi, menina,
que se libertou?
E cadê, menina, nessa sua face corada,
aquela ponta de expressão de culpa
que sempre te acompanhou?
Menina que voa...
não sei de onde pulou...
nem sei onde vai aterrissar.
Não sei se flanará longamente,
ou se seu voo será apenas um breve voar.
Não sei se pousará docemente,
ou se se estatelará.
Mas...
sei, sim, doce menina,
que esse vento no rosto,
e esse frescor na alma
jamais vão te abandonar...

Ana Lúcia Sorrentino
escrito em 29/08/2011


domingo, 4 de setembro de 2011

A Lucidez Perigosa


Estou sentindo uma clareza tão grande
que me anula como pessoa atual e comum:
é uma lucidez vazia, como explicar?
Assim como um cálculo matemático perfeito
do qual, no entanto, não se precise.
Estou por assim dizer
vendo claramente o vazio.
E nem entendo aquilo que entendo:
pois estou infinitamente maior que eu mesma,
e não me alcanço.
Além do que:
que faço dessa lucidez?
Sei também que esta minha lucidez
pode-se tornar o inferno humano
- já me aconteceu antes.
Pois sei que
- em termos de nossa diária
e permanente acomodação
resignada à irrealidade -
essa clareza de realidade
é um risco.
Apagai, pois, minha flama, Deus,
porque ela não me serve para viver os dias.
Ajudai-me a de novo consistir
dos modos possíveis.
Eu consisto,
eu consisto,
amém.

Clarice Lispector