sábado, 25 de setembro de 2010

Trechos de Clarice Lispector

"O que eu sinto eu não ajo.
O que ajo não penso.
O que penso não sinto.
Do que sei sou ignorante.
Do que sinto não ignoro.
Não me entendo
e ajo como se
me entendesse."


Suely Laitano Nassif

terça-feira, 7 de setembro de 2010

O Barba Azul – Trabalhando a Negação da Realidade

No post anterior sobre o Barba Azul, questionei se você se lembrava de alguma situação em sua vida que foi tão fortemente abafada, que você concluiu que o melhor a fazer seria fingir não ter visto, não ter ouvido e não falar nada. E comentei que isso me fazia lembrar da lenda dos três macacos sábios. Hoje quero refletir sobre isso. Você me acompanha?

Clarissa, em Mulheres que Correm com os Lobos, diz que recebemos, ao longo da vida, repetidamente, a seguinte mensagem: não veja, não tenha insight, não fale, não haja.
Tenho uma experiência pessoal interessante, que ilustra muito bem o quanto, por conta disso, alguns segredos perduram por toda uma vida, e na iminência de virem à tona, ainda há os que tentam perpetuá-lo.

Eu era muito criança, e minhas irmãs e primas já eram adolescentes. Um amigo da família nos convidou para o aniversário de sua filha, e embora muito pequenina, na época, tive a percepção de que a ocasião seria especial, pela excitação que pairou em minha casa durante toda a semana anterior à festa. Especulava-se que roupas as meninas usariam, quem estaria lá, que delícias haveria para comer... Mas não me lembro de ter ouvido nenhuma recomendação especial por parte de ninguém. Estaríamos entre parentes e amigos. Portanto, seguras.
A festa foi ótima, mas, repentinamente, aconteceu algo que só vim a entender mais de quarenta anos depois! Num determinado momento, uma das meninas foi ao banheiro, e todas a acompanharam. Lembro-me de uma grande algazarra. Mal a porta se fechara atrás da última a entrar, e se ouviu uma enorme gritaria. A porta se abriu, e as meninas saíram correndo, apavoradas, uma querendo passar por cima da outra, para sair dali o mais rapidamente possível!
Sem entender o que acontecera, fui atrás, mas já chamavam para cantar o parabéns, e a agitação das meninas se diluiu na bagunça generalizada. Eu sabia que havia acontecido algo, mas, como era muito pequena, e ninguém comentou nada, também não perguntei. A coisa morreu ali. Não fosse um certo clima de consternação geral na semana seguinte, poderia se dizer que realmente, nada acontecera.

Alguns anos depois, adolescente, eu ainda me lembrava do episódio, e, conversando com minha irmã, toquei no assunto. Ela desconversou. Muito à meia-boca, falou algo sobre alguém ter hábitos estranhos, e, sinceramente, continuei não entendendo nada. Muito mais tarde, já mulher feita, e inconformada, voltei a questionar e, finalmente, fiquei sabendo o que acontecera de fato.

Vou contar pra vocês, com todas as letras, como seria absolutamente normal se a nossa sociedade tivesse interesse em descortinar a verdade: quando as meninas entraram no banheiro, deram de cara com um conhecido da família com as calças abertas e o pênis ereto pra fora, exercitando um exibicionismo doentio, que lhe era característico e sobre o qual todos os nossos conhecidos adultos estavam avisados.

Pergunto, e gostaria muito que vocês me respondessem:
- Não seria o caso de terem alertado as meninas, para que elas se cuidassem?
- Não era importante que, pelo menos, conversassem com elas depois do acontecido, para saber que impacto isso lhes causara?
- O silêncio absoluto sobre o assunto significou o quê?

Pois saibam: não se falou abertamente, nem de forma alguma. O assunto foi enterrado sem maiores explicações. Quem não tivesse compreendido o porquê da atitude daquele homem, que a metabolizasse como pudesse, porque nenhum adulto se proporia a falar sobre o caso.

Quando, mais de quarenta anos depois, me dei conta do quanto essa situação havia perdurado, fiquei indignada, e escrevi sobre isso. E - pasmem! Fui repreendida por alguém, que me disse que não se fala sobre essas coisas!!! Eu escrevera justamente para defender a idéia de que essas coisas têm que vir à tona. E recebi, já adulta, a mesma mensagem que recebera quando criança e ficara sem entender nada: não veja, não tenha insight, não fale, não haja.
E, pior: pelo tom de quem nos censura, ao trazer à tona assuntos controversos, nos sentimos como criminosos. Uma espécie de inversão de valores faz com que aquele que fala sobre o crime seja o criminoso, e não aquele que o comete.
Isso me reporta a algumas cenas que já vi em nosso cenário político em que alguém que instala uma escuta para provar algum crime de corrupção acaba sendo mais tragicamente punido do que o próprio corrupto.

Não defendo aqui a idéia de que devamos sair por aí fofocando a respeito da vida alheia, julgando e condenando, ou atirando pedras em quem tenha problemas. Defendo uma maneira realista de ver o mundo e a vida, o que nos dará competência para enxergar o Barba Azul, se ele aparecer.

No caso em questão, a família poderia, sim, de forma discreta, ter alertado as meninas que iriam à festa, para que soubessem se defender do perigo latente. E, uma vez que se criou a situação desagradável, essas meninas mereciam, sim, que algum adulto conversasse com elas a respeito do problema, para que não restassem, no final, dúvidas incômodas em suas vidas. Podemos saber como cada uma metabolizou o acontecido?

Quando recebo essas mensagens que tentam me imobilizar em todos os sentidos, me lembro da lenda dos três macacos sábios. Vocês conhecem?
Aqui mesmo, na Internet, há inúmeras versões dela, mas quase todas convergem nisso:
“Os três macacos sábios enfeitam a entrada de um templo do século XVIII, localizado no Japão. Os nomes dos macaquinhos são Mizaru (aquele que tapa os olhos), Kikazaru (o que tapa os ouvidos) e Iwazaru (aquele que tapa a boca). O folclore japonês ensina que se os homens não olhassem o mal alheio, não ouvissem o mal alheio e não falassem do mal alheio, teríamos comunidades pacíficas e harmoniosas.”
Também já li que Gandhi andava com uma estatueta desses macaquinhos, para lembrar dessa lição de sabedoria.

O fato é que, uma vez passando de boca em boca, como numa brincadeira de telefone sem fio, a essência da lenda vai se contaminando e hoje, quando pensamos na imagem desses macacos, nos vem à mente a idéia de que devemos fingir não enxergar o mal, para vivermos em paz. E isso se propaga, e as pessoas aceitam o estranho conselho!!!
Rola no mundo virtual um questionamento recorrente: afinal, os três macacos são sábios ou burros?

O que você acha? É possível combater o mal fingindo não enxergá-lo? Se você nega a realidade, a realidade muda? Se você se cala ante as injustiças, a justiça é feita?
Pense sobre isso, e exponha o que você acha, comentando aqui ou participando da nossa enquete, na guia lateral do blog.

sexta-feira, 3 de setembro de 2010

A história do Barba-Azul - Parte 3/3

- Eu... eu a perdi. É, eu a perdi. Estava passeando a cavalo, o chaveiro caiu e eu devo ter perdido uma chave.
- O que você fez com ela, mulher?
- Não... não me lembro.
- Não minta para mim! Diga-me o que fez com aquela chave!
Ele tocou seu rosto como se fosse lhe fazer carinho, mas em vez disso a segurou pelos cabelos.
- Sua traidora! - rosnou, jogando-a no chão. - Você entrou naquele quarto, não entrou?
Ele abriu o guarda-roupa com brutalidade e a pequena chave na prateleira de cima havia sangrado, manchando de vermelho todos os belos vestidos de seda que estavam pendurados.
- Chegou a sua vez, minha querida - berrou ele, arrastando-a pelo corredor e pelo porão adentro até pararem diante da terrível porta. O Barba-azul apenas olhou para a porta com seus olhos enfurecidos, e ela se abriu para ele. Ali jaziam os esqueletos de todas as suas esposas anteriores.
- Vai ser agora!!! - rugiu ele, mas ela se agarrou ao batente da porta sem largar, implorando por clemência.
- Por favor, permita que eu me acalme e me prepare para a morte. Conceda-me quinze minutos antes de me tirar a vida para que eu possa me reconciliar com Deus.
- Está bem - rosnou ele - Você tem seus quinze minutos, mas prepare-se.

A esposa correu escada acima até seus aposentos e determinou que suas irmãs fossem para as muralhas do castelo. Ajoelhou-se para rezar, mas, em vez de rezar, gritou para as irmãs.
- Irmãs, irmãs, vocês estão vendo a chegada dos nossos irmãos?
- Não vemos nada, nada na planície nua.
A cada instante ela gritava para as muralhas.
- Irmãs, irmãs, estão vendo nossos irmãos chegando?
- Vemos um redemoinho, talvez um redemoinho de areia bem longe.
Enquanto isso, o Barba-azul esbravejava para que sua esposa descesse até o porão para ser decapitada.
- Irmãs, irmãs! Estão vendo nossos irmãos chegando? - gritou ela mais uma vez.
O Barba-azul berrou novamente pela esposa e veio subindo a escada de pedra com passos pesados.
- Estamos, estamos vendo nossos irmãos - exclamaram as irmãs. - Eles estão aqui e acabaram de entrar no castelo.

O Barba-azul vinha pelo corredor na direção dos aposentos da esposa.
- Vim apanhá-la - gritou ele. Suas passadas eram pesadas; as pedras no piso se soltavam; a areia da argamassa caía esfarinhada no chão.
No instante em que ele entrou nos aposentos com as mãos esticadas para agarrá-la, seus irmãos chegaram galopando pelo corredor do castelo ainda montados, entrando assim no quarto. Ali eles encurralaram o Barba-azul fazendo com que caísse até a balaustrada. E ali mesmo, com suas espadas, avançaram contra ele, golpeando e cortando, fustigando e retalhando, até derrubá-lo ao chão e matando-o afinal, deixando para os abutres o que sobrou dele.

Por Suely Laitano Nassif

quinta-feira, 2 de setembro de 2010

A história do Barba-Azul - Parte 2/3

Suas irmãs vieram visitá-la e elas sentiam, como todo mundo, muita curiosidade a respeito das instruções do dono da casa quanto ao que deveria ser feito enquanto ele estivesse fora. A jovem esposa falou alegremente: - Ele disse que podemos fazer o que quisermos e entrar em qualquer aposento que desejarmos, com exceção de um. Só que eu não sei qual é o aposento. Só tenho uma chave e não sei que porta ela abre.

As irmãs resolveram fazer um jogo para ver que chave servia em que porta. O castelo tinha três andares, com cem portas em cada ala, e como havia muitas chaves no chaveiro, elas iam de porta em porta, divertindo-se imensamente ao abrir cada uma delas. Atrás de uma porta, havia uma despensa para mantimentos, atrás de outra, um depósito de dinheiro. Todos os tipos de bens estavam atrás das portas, e tudo parecia maravilhoso o tempo todo. Afinal, depois de verem todas aquelas maravilhas, elas acabaram chegando ao porão e, ao final do corredor, a uma parede fechada. Ficaram intrigadas com a última chave, a que tinha o pequeno arabesco.

- Talvez essa chave não sirva para abrir nada - Enquanto diziam isso, ouviram um ruído estranho - errrrrrr.
Deram uma espiada na esquina do corredor e - que surpresa! - havia uma pequena porta que acabava de se fechar. Quando tentaram abri-la, ela estava trancada.
- Irmã, irmã, traga sua chave - gritou uma delas - Sem dúvida é essa a porta para aquela chavinha misteriosa.
Sem pestanejar, uma das irmãs pôs a chave na fechadura e a girou. O trinco rangeu, a porta abriu-se, mas lá dentro estava tão escuro que nada se via.
- Irmã, irmã, traga uma vela. - Uma vela foi acesa e mantida no alto um pouco mais para dentro do aposento, e as três mulheres gritaram ao mesmo tempo, porque no quarto havia uma enorme poça de sangue; ossos humanos enegrecidos estavam jogados por toda parte e crânios estavam empilhados nos cantos como pirâmides de maçãs.

Elas fecharam a porta com violência, arrancaram a chave da fechadura e se apoiaram umas nas outras arquejantes, com o peito arfando. Meu Deus! Meu Deus!

A esposa olhou para a chave e viu que ela estava manchada de sangue. Horrorizada, usou a saia para limpá-la, mas o sangue prevaleceu.
- Oh, não! - exclamou. Cada uma das irmãs apanhou a chave minúscula nas mãos e tentou fazer com que voltasse ao que era antes, mas o sangue não saía.

A esposa escondeu a chavinha no bolso e correu para a cozinha. Quando lá chegou, seu vestido branco estava manchado de vermelho do bolso até a bainha, pois a chave vertia lentamente lágrimas de sangue vermelho-escuro.
- Rápido, rápido, dê-me um esfregão de crina - ordenou ela à cozinheira. Esfregou a chave com vigor, mas nada conseguia deter seu sangramento. Da chave minúscula transpirava uma gota após a outra se sangue vermelho.

Ela levou a chave para fora, tirou cinzas do fogão a lenha, cobriu a chave de cinzas e esfregou mais. Colocou-a no calor do fogo para cauterizá-la. Pôs teia de aranha nela para estancar o fluxo, mas nada conseguia deter as lágrimas de sangue.
- Ai, o que vou fazer? - lamentou-se ela. - Já sei, vou guardar a chave. Vou colocá-la no guarda-roupa e fechar a porta. Isso é um pesadelo. Tudo vai dar certo.

E foi o que fez.
O marido chegou de volta exatamente na manhã do dia seguinte e entrou no castelo já procurando pela esposa.
- E então, como foram as coisas enquanto eu estive fora?
- Tudo bem, senhor.
- Como estão minhas dispensas? - trovejou o marido.
- Muito bem, senhor.
- E como estão meus depósitos de dinheiro? - rosnou ele.
- Os depósitos de dinheiro também estão bem, senhor.
- Então, tudo está certo, esposa?
- É, tudo está certo.
- Bem - sussurrou ele - então é melhor devolver minhas chaves.
Com um relancear de olhos, ele percebeu a falta de uma chave.
- Onde está a menorzinha?
continua...

Por Suely Laitano Nassif

quarta-feira, 1 de setembro de 2010

A história do Barba-Azul - Parte 1/3

Existe uma mecha de barba que fica guardada no convento das freiras brancas nas montanhas distantes. Como chegou até o convento, ninguém sabe. Uns dizem que foram as freiras que enterraram o que sobrou do seu corpo já que ninguém mais se dispunha a nele tocar. Desconhece-se o motivo pelo qual as freiras iriam guardar uma relíquia dessa natureza, mas é verdade. Uma amiga de uma amiga minha viu com seus próprios olhos. Ela diz que a barba é azul, da cor índigo para ser exata. É tão azul quanto o gelo escuro no lago, tão azul quanto a sombra de um buraco à noite. Essa barba pertenceu um dia a alguém de quem se dizia ser um mágico fracassado, um homem gigantesco com uma queda pelas mulheres, um homem conhecido pelo nome de Barba-azul.

Dizia-se que ele cortejava três irmãs ao mesmo tempo. As moças tinham, porém, pavor de sua barba com aquele estranho reflexo azul e, por isso, se escondiam quando ele chamava. Num esforço para convencê-las da sua cordialidade, ele as convidou para um passeio na floresta. Chegou conduzindo cavalos enfeitados com sinos e fitas cor-de-carmim. Acomodou as irmãs e a mãe nos cavalos, e partiram a meio-galope floresta adentro. Lá passaram um dia maravilhoso cavalgando, e seus cães corriam a seu lado e à sua frente. Mais tarde, pararam debaixo de uma árvore gigantesca, e o Barba-azul as regalou com histórias e lhes serviu guloseimas.

"Bem, talvez esse Barba-azul não seja um homem tão mau assim", começaram a pensar as irmãs.

Voltaram para casa tagarelando sobre como o dia havia sido interessante e como haviam se divertido. Mesmo assim, as suspeitas e temores das duas irmãs mais velhas voltaram, e elas juraram quem não veriam o Barba-azul de novo. A irmã mais nova, no entanto, achou que, se um homem podia ser tão encantador, talvez ele não fosse tão mau. Quanto mais ela falava consigo mesma, menos assustador ele lhe parecia, e sua barba também parecia menos azul.
Portanto, quando o Barba-azul pediu sua mão em casamento, ela aceitou. Ela havia refletido muito sobre a sua proposta e concluído que ia se casar com um homem muito distinto. Foi assim que se casaram e, em seguida, partiram para seu castelo no bosque.

- Vou precisar viajar por algum tempo - disse ele um dia à mulher.
- Convide sua família para vir aqui se quiser. Você pode cavalgar nos bosques, mandar os cozinheiros prepararem um banquete, pode fazer o que quiser, qualquer desejo que seu coração tenha. Para você ver, tome minhas chaves. Pode abrir toda e qualquer porta das despensas, dos cofres, qualquer porta do castelo; mas essa chavinha, a que tem nos altos uns arabescos, você não deve usar.

- Está bem, vou fazer o que você pediu. Parece que está tudo certo. Portanto pode ir, meu querido, não se preocupe e volte logo.
- E assim ele partiu, e ela ficou.
continua...

Por Suely Laitano Nassif